Um estudo desenvolvido na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) analisou casos envolvendo violência contra pessoas em situação de rua. Foram mapeados episódios ocorridos na Região Metropolitana de Curitiba, entre maio e novembro do ano passado. A maioria das ocorrências envolveu violência física.
O levantamento foi feito com base em denúncias coletadas pelo Observatório Estadual de Direitos Humanos da População em Situação de Rua do Paraná, criado em 2021 através da articulação de entidades sociais, grupos acadêmicos e os conselhos profissionais de Psicologia e Serviço Social. No período analisado, ocorreram 30 casos. Cada um deles poderia envolver simultaneamente denúncias de diferentes formas de violência.
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A análise dos dados foi realizada na dissertação de mestrado de Isabele Cristine Gulisz. Ela pondera: “destaca-se que esses números não condizem com a totalidade das ocorrências, considerando os inúmeros casos de violações de direitos que ocorrem diariamente contra essa população, os quais, infelizmente, não chegam em sua maioria ao conhecimento do Observatório”.
O professor da PUC-PR, Rodrigo Alvarenga, que orientou a pesquisa, chama atenção para o perfil mais recorrente dos denunciantes.
“A gente percebeu que a maior parte são pessoas que estavam na rua entre seis meses e um ano. Pelo empobrecimento, acabaram nessa situação e estão mais propensas também a denunciar. Porque, muitas vezes, uma pessoa que já está há 10 ou 20 anos em situação de rua nem acredita mais na denúncia. Já desistiu de procurar os seus direitos.”
A violência física foi a mais denunciada, representando 22% do total. Em seguida, aparecem as denúncias de discriminação (18%), de violência psicológica (18%), de negligência (17%), e de violência institucional (15%). Outras categorias somaram 10%. Dentro de violência institucional, foram consideradas denúncias envolvendo abuso policial, abuso de autoridade, higienismo, retirada de pertences, descaso de atendimento, remoção forçada e superlotação de abrigos.
“Tem certas violências relacionadas aos equipamentos públicos que a gente considera ser resultado da discriminação, da negligência e da violência institucional. Nos espaços de acolhimento sempre tem denúncia de muquirana e percevejo. As pessoas ficam todas picadas por insetos. Os responsáveis por esses espaços falam que a dedetização está em dia, mas há um problema meio generalizado que leva as pessoas, mesmo numa cidade fria como Curitiba, a não aceitar ir para uma unidade de acolhimento nem no inverno”, exemplifica Alvarenga.
Foram constatados ainda que cinco casos envolveram mortes de pessoas em situação de rua. Em três deles, as causas não foram identificadas. Um envolveu um crime de homicídio, mas o estudo não obteve informações do agressor. O outro caso, a suspeita é de hipotermia. Segundo a denúncia que chegou ao Observatório Estadual de Direitos Humanos da População em Situação de Rua do Paraná, a vítima teve os seus pertences tomados pela Guarda Municipal dois dias antes.
“Na noite do óbito os termômetros apontavam para 6ºC e a vítima foi supostamente encontrada em posição fetal, tentando manter a temperatura do corpo”, registra o estudo.
A atuação da Guarda Municipal também é citada em análise feita sob um ângulo racial. Ela aparece como a principal autora de violações contra homens pretos em situação de rua. Considerando todos os 30 casos mapeados, 47% das vítimas foram pessoas pardas, 41% pretas e 12% brancas.
“Me parece que o mais importante, para nós enquanto grupo de pesquisa, é perceber que as violações de direitos humanos que ocorrem de forma sistemática não são exatamente abusos de um guarda municipal ou um policial em particular. São abusos que ocorrem em função do tipo de operação designada pelo poder público com relação à população em situação de rua. Então os servidores públicos ou os próprios guardas são empurrados para fazer uma tarefa que é higienista. Acabam sendo designados para remover pessoas e essa questão da remoção forçada é um dos principais problemas, porque é uma violação de direitos”, diz Rodrigo Alvarenga.
Segundo ele, as violações são praticadas muitas vezes com a participação de responsáveis pela assistência social. Ele diz que, não apenas na região metropolitana de Curitiba como em diversas cidades do Brasil, há relatos de iniciativas higienistas conduzidas por quem deveria zelar pelos direitos dessa população.
“São operações que seriam de abordagem social e limpeza da cidade, mas na prática se trata de remover as pessoas em situação de rua de locais que são públicos e dos cartões-postais da cidade”, lamenta Alvarenga.
Exclusão
Em sua dissertação, Isabele observa que direitos fundamentais e humanos da população em situação de rua são constantemente negados e violados, mantendo-os excluídos e marginalizados pela sociedade em geral. Essas pessoas também são usualmente tachadas como indivíduos criminosos, vagabundos e perigosos. No entanto, são elas que se veem constantemente em situação de perigo, risco e vulnerabilidade, estando sujeitas a diferentes formas de violência: física, sexual, psicológica, patrimonial, institucional, etc.
Isabele também chama a atenção que o problema dessas pessoas que chegam à situação de rua é multifacetado, pois elas concentram simultaneamente vulnerabilidades sociais, psicológicas, físicas, emocionais e econômicas. No entanto, são frequentemente responsabilizadas por sua condição, a partir de discursos que as culpabilizam.
Geralmente enfrentam a falta de possibilidades reais de oferta de recursos e políticas públicas que auxiliem no processo de superação da situação de rua. A pesquisadora também observa que a violência contra as pessoas em situação de rua é naturalizada pela sociedade.
“Compreender as formas de violência que afetam a população em situação de rua contribui não somente para dimensionar o problema e pensar em possíveis soluções pontuais e individuais, mas também auxilia na criação de espaços de discussão sobre a cidade, os direitos, as desigualdades, a justiça e a própria sociedade.”
Retrato Nacional
Para analisar a situação de forma mais aprofundada, o estudo também reuniu dados de outros levantamentos. Segundo uma pesquisa realizada em 2018 na Universidade Federal do Pará (UFPA), o Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Material Reciclável (CNDDH) registrou entre 2010 e 2014 cerca de 2,5 mil denúncias recebidas em todo o país envolvendo violações de direitos, como agressões, assassinatos, abuso de autoridade e de instituições.
Também neste mapeamento, a violência física apareceu como a mais denunciada, representando 34,4% do total, seguida da violência institucional, em 24,1%. A negligência apareceu em 16,3% das denúncias e a violência psicológica em 16,1%. Foi registrado ainda um total de 327 casos de homicídios de pessoas em situação de rua em 2013 e 248 casos em 2014.
Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinam), gerido pelo Ministério da Saúde, reforçam esse quadro. Ele mostra que, entre 2015 e 2017, foram registrados no país 17.386 atendimentos de casos de violência motivada em razão da condição de situação de rua da vítima.
Em relação às formas de violência, a de maior predominância nos registros foi a física, com 92,9%. Posteriormente aparecem a violência psicológica e moral com 23,2% e a violência sexual com 3,9%. Sobre os autores da violência, desconhecidos foram os principais acusados, com 34,9%, seguido de amigos ou conhecidos, com 31,5% dos casos. No recorte racial, pessoas negras foram alvos mais frequentes, com 54,8%.
Covid-19
A população em situação de rua cresceu na última década em um ritmo muito superior ao crescimento vegetativo da população brasileira. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), saiu de 90.480 em 2012 para 281.472 em 2022. Um aumento de 211%. Considerando apenas os três últimos anos dessa série, entre 2020 e 2022, houve um salto de quase 67 mil novas pessoas em situação de rua.
Este último período engloba a crise sanitária decorrente da disseminação mundial da covid-19. No ano passado, como parte do desenvolvimento do estudo, Rodrigo Alvarenga e Isabele Cristine Gulisz publicaram em conjunto um artigo científico chamando atenção para violações de direitos durante a pandemia. Eles observaram que o isolamento social e as medidas de segurança adotadas para proteger a população não foram acompanhadas de ações que minimizassem os impactos sofridos pelas pessoas em situação de rua.
O artigo analisa em destaque o contexto de Curitiba, onde o caso foi parar na Justiça. Uma ação foi movida pela Defensoria Pública do Paraná para exigir que o município garantisse direitos básicos durante a pandemia, tais como acesso a serviços públicos e vagas suficientes em unidades de acolhimento.
“Sem água e banheiros públicos para realização de sua higiene pessoal e hidratação, com restaurantes populares e comércios fechados, sem itens de segurança como máscaras, luvas ou álcool gel, a vida de quem se encontra em situação de rua tornou-se rapidamente sacrificável. Expostos à contaminação, sede, fome e abandono do poder público, a vulnerabilidade em face da repressão e violência policial se intensificaram”, escreveram.