Marcelo Henrique
Os últimos rumos que a sociedade mundial tem tomado transcendem a falsa impressão de que o caminho do esforço e da retidão – sempre mais árduo e dispendioso – perde espaço para os atalhos mais rápidos que vendem a geralmente equivocada ideia de que atingem o mesmo objetivo. Nunca a Internet foi tão cheia de promessas de enriquecimento imediato, mediante “apenas um treinamento gratuito” que algum desses famosos das redes oferecem sob o argumento de que todo conhecimento deve ser compartilhado, ou tantas outras falas altruístas, mas que escondem cursos geralmente bem pagos, disponibilizados em plataformas do gênero. Tudo isso apenas faz ratificar conceitos que herdamos dos nossos avós, sobretudo no que diz respeito ao esforço e à retidão que devem ser as guias do caminho para o sucesso, conquistado como consequência, não como finalidade.
A imprensa nacional registrou a aprovação, no concurso vestibular da USP, da estudante Marya Teresa Ribeiro, para o curso de Medicina. O destaque da esmagadora maioria das matérias está no fato da jovem ser filha de um porteiro e de uma faxineira. Reflexo de um Estado com severos desvios nas suas políticas de Educação, é noticiado como surpreendente uma pessoa do povo ascender às elitizadas universidades, mesmo sem ostentar sobrenomes pomposos ou ter frequentado as caríssimas escolas particulares disponíveis no mercado atualmente. As escassas vagas universitárias das faculdades públicas e gratuitas são praticamente cativas dos alunos do sistema pago.
Dias atrás, na Faculdade de Direito do Largo de São Franciso, também da USP, comemorava-se a formatura da primeira turma de cotistas admitidas na universidade. Uma das primeiras correções de muitas que ainda precisam ser efetivadas para corrigir essa dívida histórica. Mas, como digo insistentemente, o mecanismo das cotas é uma solução paliativa e pontual de um problema muito mais profundo, que passa pela reestruturação de toda a estrutura do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Problema esse que Marya conseguiu superar quando – por mérito – obteve uma bolsa de estudos em curso preparatório e identificou o quanto estava em desvantagem perante os concorrentes egressos do sistema privado de ensino.
Municiada dos recursos oferecidos pelo curso preparatório e agarrada aos valores ético-morais do esforço e da retidão, superou – individualmente – toda a sua formação deficitária e fez acontecer um verdadeiro cardápio de aprovações, sendo-lhe franqueada a matrícula na instituição de sua preferência. Um feito que, por óbvio, foi de mérito individual, mas não solitário, justamente porque a estudante faz questão de enaltecer o apoio dado por seus pais durante todo o processo, sobretudo na reta final dos últimos três anos.
Afinal, quando se lê que alguém estudou uma média de 17 horas por dia, morando em família, subliminarmente lê-se as 17 horas de silêncio que essa família fez e todo o suporte que à estudante foi dado para que esse sucesso (consequencial) fosse alcançado de maneira tão surpreendente. Aos pais, meus cumprimentos, vocês são muito mais do que as profissionais que lhes rotularam para o Brasil. O destaque não deveria ter sido a humildade, mas sim a família, a união e o companheirismo. Parabéns, Marya! E muito obrigado! Precisamos de mais pessoas como você, para que – dentro em breve – possamos ler manchetes como: “Aluna egressa do sistema público, com apoio da família, conquista vaga na Medicina da USP estudando 17 horas por dia”.