Quando se estabelecem metas, atingi-las pode soar como obrigação. A leitura, porém, não pode sempre ser assim fria, ainda mais quando o caminho é tomado por percalços que não poderiam ser previstos, como uma pandemia que colocou o mundo de joelhos. Por isso, a delegação brasileira alcançar, na Paralimpíada de Tóquio (Japão), os objetivos traçados lá no começo do ciclo, pode sim ser considerado um feito excepcional.
Quando anunciou o planejamento estratégico do período entre 2017 e 2024, uma das metas do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) era manter o país entre os dez melhores do quadro de medalhas. Em Tóquio, a marca foi alcançada com o sétimo lugar, repetindo a colocação dos Jogos de Londres (Grã-Bretanha), até então a melhor campanha do Brasil no evento.
O desempenho na capital japonesa, porém, supera (muito) o de nove anos atrás. Foram 22 medalhas de ouro (contra 21 em Londres). Nunca o Brasil retornou de uma Paralimpíada tão dourado. Além disso, se em 2012 os brasileiros ficaram dez ouros atrás do sexto colocado (Estados Unidos), agora foram apenas dois topos de pódio a menos que o país imediatamente à frente (Ucrânia).
Aliás, durante boa parte dos Jogos em Tóquio, o Brasil brigou medalha a medalha com Ucrânia, Holanda e Austrália por um posto no top-5, ao lado das potências China (líder pela quinta edição consecutiva), Grã-Bretanha, Estados Unidos e Rússia (representada pelo Comitê Paralímpico Russo, em razão de sanções às quais o país foi submetido por casos de doping). Se, na reta final, os brasileiros foram ultrapassados pelos holandeses, por outro ficaram à frente dos australianos, tradicionais participantes do movimento paralímpico.
Outra diferença fundamental na comparação com Londres é o número total de medalhas. Na capital britânica, foram 43. Na japonesa, 72. Quase o dobro. O mesmo número obtido nos Jogos do Rio de Janeiro, há cinco anos, quando o Brasil não só possuiu uma delegação mais numerosa (286 atletas, contra 259 em Tóquio), como esteve presente nas 22 modalidades do programa paralímpico. No Japão, o Brasil não teve representantes no basquete e no rugby em cadeira de rodas.
Aqui vale um parêntese. No já mencionado planejamento estratégico, o CPB estimava subir ao pódio entre 60 e 75 vezes em Tóquio. As 72 medalhas, portanto, atendem a expectativa e quase a superam. Porém, considerando o impacto da pandemia do novo coronavírus (covid-19), que interrompeu treinos, cancelou competições, obrigou técnicos e atletas a revisarem preparações e criou um ambiente de incerteza (não somente do ponto de vista esportivo), avaliar que este resultado, na verdade, vai além das expectativas, não é um exagero.
Se a diferença no número de ouros (22 a 14) já seria suficiente para desempatar o comparativo entre o desempenho em Tóquio e no Rio, segue outra estatística. Na capital nipônica, os brasileiros foram ao pódio em 14 modalidades, uma a mais que na cidade fluminense. Vale, aqui, um destaque ao parataekwondo, estreante em Paralimpíada, onde o Brasil medalhou com os três atletas que levou ao Japão. Nathan Torquato (ouro), Debora Menezes (prata) e Silvana Fernandes (bronze) garantiram o país no topo do quadro de medalhas do esporte.
Como era de se esperar, por serem as equipes mais numerosas da delegação, atletismo e natação foram os carros-chefe do Brasil. Na pista e no campo do Estádio Olímpico de Tóquio, o país conquistou 28 medalhas. São cinco a menos que no Rio, é verdade, mas até aí é possível fazer um recorte positivo. O número de ouros, por exemplo, foi o mesmo (oito). Poderia ser maior, não fosse a inexplicável (até agora) anulação das marcas que dariam a Thiago Paulino o primeiro lugar no arremesso de peso da classe F57 (atletas com deficiência nos membros inferiores, que competem sentados).
Além disso, considerando apenas as provas individuais, foram 23 atletas diferentes subindo ao pódio (ante 22 na Rio 2016), sendo 16 novos medalhistas. Boa parte deles referências de uma nova geração, como Vinícius Rodrigues (prata nos 100m da classe T63 – amputados de perna), Thomas Ruan (prata nos 400m da T47 – amputados de braço), Washington Júnior (bronze nos 100m da T47) e Jardênia Félix (bronze nos 400m da T20 – atletas com deficiência intelectual). Esta última, com apenas 17 anos, foi a mulher mais jovem da delegação brasileira.
Renovação ainda mais evidente na natação brasileira, que teve seu melhor desempenho na história dos Jogos, com 23 medalhas, sendo oito de ouro. O interessante é que após três Paralimpíadas com apenas dois nadadores do país (André Brasil e Daniel Dias) no topo do pódio, em Tóquio foram cinco atletas diferentes ostentando a láurea dourada: Talisson Glock, Gabriel Bandeira, Gabriel Araújo (o Gabrielzinho), Wendell Belarmino e Carol Santiago. Deles, apenas Talisson havia competido nos Jogos de 2016 (Rio de Janeiro).
Dos novatos, apenas Carol, introduzida tardiamente ao movimento paralímpico, supera os 23 anos. A nadadora de 36 anos, aliás, foi a protagonista do Brasil em Tóquio, com cinco medalhas: três ouros, uma prata e um bronze. Gabrielzinho (19 anos) e Wendell (23), por sua vez, despontaram primeiro em edições da Paralimpíada Escolar, considerado o maior evento de esporte adaptado no mundo para jovens desta faixa etária.
A variedade de medalhistas na piscina do Centro Aquático de Tóquio também vai além do Rio. No Japão, dez atletas subiram ao pódio ao menos uma vez em provas individuais (metade deles no topo). No Brasil, foram oito nadadores a terem o gostinho da medalha, sendo que só Daniel Dias levou ouro. Aliás, é simbólico que, na edição em que o multicampeão encerra a carreira profissional (com impressionantes 27 láureas), uma nova safra surja com esse vigor para dar sequência ao legado dele, André, Clodoaldo Silva e outros.
A natação não foi a única modalidade em que o Brasil celebrou novos campeões. No judô, Alana Maldonado coroou um ciclo marcado pelo título mundial em 2018 (após se recuperar de uma cirurgia no joelho) e a liderança do ranking da Federação Internacional de Esportes para Cegos (IBSA, sigla em inglês) com o ouro inédito de uma mulher brasileira na modalidade. Pioneirismo também atingido no halterofilismo por Mariana D'Andrea. O hino nacional ainda tocou de forma inédita na paracanoagem, com o primeiro ouro obtido pelo país no esporte, com Fernando Rufino, o Cowboy de Aço.
Faltou falar do goalball, mas este merece um parágrafo a parte. É possível fazer uma analogia com o futebol brasileiro até a Olimpíada do Rio de Janeiro: campeão mundial, considerado o melhor do mundo, mas que sempre batia na trave nos Jogos. Em Tóquio, Leomon, Romário, Zé Roberto, Parazinho e Alex, todos remanescentes do bronze em 2016 (os três primeiros ainda foram prata em Londres 2012), enfim celebraram o ouro. Só Emerson, no elenco masculino, disputou a primeira Paralimpíada da vida.
A derrota por 8 a 6 para os Estados Unidos na primeira fase, a única da campanha, não muda a autoridade com a qual os brasileiros chegaram ao título, com direito a duas goleadas (11 a 2 e 9 a 5) sobre a Lituânia, campeã no Rio. Na final, a vitória por 7 a 2 sobre a China, com o jogo sob controle desde o início, não deixou dúvidas sobre a justiça do título naquela que é a única modalidade paralímpica a não ser uma adaptação.
Em uma campanha de recuperação, o time feminino esteve próximo de uma decisão inédita. Na semifinal, as brasileiras venciam as norte-americanas por 2 a 1 até 17 segundos do fim, quando sofreram o empate, caindo nos pênaltis. Diferente da seleção masculina, a das mulheres foi a Tóquio reformulada no goalball. Somente duas jogadoras (Ana Carolina e Victória Amorim), entre as seis convocadas, tinham histórico de Paralimpíada. Se não veio medalha com o quarto lugar, fica a sensação de uma equipe amadurecida para buscar o pódio em 2024.
Aliás, o que esperar na Paralimpíada de Paris (França)? Por um lado, trata-se de um ciclo bem mais curto que o normal, de apenas três anos, com uma margem de erro menor que no intervalo entre Rio e Tóquio. Por outro, como a renovação entre uma edição e outra já começou no Japão, com caras novas despontando nas principais modalidades, dá para inferir que o Brasil, de alguma forma, ganhou tempo no processo.
No já citado planejamento estratégico 2017/2024, a previsão na capital francesa era que o Brasil não apenas siga no top-10 do quadro, como vá ao pódio entre 70 e 90 vezes. Após duas edições seguidas batendo na casa das 70 medalhas, sendo a última após um fim de ciclo tumultuado, o que lá atrás poderia soar ousado demais, hoje não parece tão distante assim. O caminho até Paris está oficialmente aberto.