Uma composição de paisagens humanas, que já atravessa décadas, tem vozes, histórias e o poder das mulheres. O programa Viva Maria, da Empresa Brasil de Comunicação, veiculado pela Rádio Nacional da Amazônia, tem uma trajetória singular na comunicação brasileira ao trazer a cidadania para a pauta diária. Mulheres entrevistadas ganham voz ao pedir o banco da escola, a carta, as plantas, o trabalho, a união por uma solidariedade e sororidade femininas. No dia 14 de setembro, o Viva Maria completa 40 ano no ar e a Agência Brasil te convida a conhecer, na série Viva Maria, 40 anos, alguns dos personagens que construíram a história do programa.
Engajamento raiz
Ela recebe cartas manuscritas, mesmo em tempos da internet. Mas também tem a caixa lotada de mensagens instantâneas e e-mails. Colecionadora de histórias e reconhecimento. A jornalista Mara Régia di Perna, uma das profissionais mais premiadas do Brasil, apresentadora do Viva Maria há 40 anos, mantém o espírito guerreiro de 9,6 mil programas atrás, em 1981.
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Nesse caminho, o que ela gosta mesmo é de comemorar as trajetórias de transformação que pôde testemunhar e espalhar pelos seus microfones. Histórias vindas da Amazônia ou de outras partes do país. As Marias, como ela denomina as mulheres lutadoras, encontraram na profissional a confiança para denunciar, alertar, pedir ajuda, comemorar junto ou mesmo declamar uma poesia… “Bom dia, bom dia…” espalha aos 70 anos de idade uma animação permanente, como se ainda estivesse apenas começando.
A missão está na ponta da língua.
“Nós não cobrimos espetacularização. O programa cobre processos”.
Em entrevista à Agência Brasil, Mara Régia recorda o começo do programa, histórias marcantes, os sentimentos e os bastidores de coberturas.
Agência Brasil: Como começou o Viva Maria?
Mara Régia di Perna: “Maria, Maria, é um dom, uma certa magia…”.Olha só. (É uma história de) Pura magia, como a música de Fernando Brandt e Milton Nascimento. Estava em Brasília o grupo Corpo com a música Maria, Maria fazendo do balé uma expressão de força, raça e fé. E tivemos a ideia de criar um programa que falasse com as mulheres. Desde o começo, eu tinha antenado que precisávamos falar sobre a mulheres de Brasília. Até porque muitas mulheres se ressentiam de só terem comunicação masculina no ar. Eram só os homens que falavam. Havia uma ideia preconcebida que as mulheres não ouvem outras mulheres. Ao idealizarmos o programa, eu e a Antonieta Negrão, nós tivemos por parte do nosso gerente, o saudoso Eduardo Fajardo, para não abrirmos mão de uma voz masculina por quem as mulheres pudessem se apaixonar. Discordamos. Todos entenderam que o Viva Maria seria um programa para falar de mulher para mulher. Assim se passaram 40 anos. Meu Deus, eu nem acredito…
Agência Brasil: Como foi que surgiu essa relação com a Amazônia?
Mara Regia: A Amazônia foi a responsável pelo meu início de carreira no rádio. Eu estudava na Universidade de Brasília (UnB) o curso de publicidade e propaganda. Um amigo soube que o sistema público havia criado uma rádio para a Amazônia. Então fiquei com aquilo na cabeça. Hoje sei que não é por acaso que tenho Régia no nome. Eu fui, então, fazer a prova. Fiz, na época, um jornal do seringueiro. Deu certo. Depois, na Radiobrás, ocupei um lugar que estava vago, uma oportunidade na Rádio Nacional, à tarde. Assim consolidamos o Viva Maria nessas ondas. Na Rio 1992, comecei a fazer a campanha do Planeta Fêmea. Foi um delírio total. Foi graças à Rio 92 que conheci, por exemplo, histórias como a de dona Raimunda dos Cocos (falecida em 2018). Ela está no calendário que comemora os 40 anos do Viva Maria. Sempre vi no rádio um projeto de transformação social. Nessa trajetória, fiz uma série de oficinas sobre saúde da mulher, também em relação aos direitos reprodutivos. Tive 183 vezes na Amazônia fazendo trabalho de formiguinha e para conhecer as mulheres. São muitas as peculiaridades. Tivemos a oportunidade de nos encontrarmos com os microfones da EBC para fazer o Viva Maria e o Natureza Viva. Esse é o rádio em que a gente acredita. O rádio que está a serviço da comunicação pública.
Agência Brasil: Qual a sua prioridade no programa?
Mara Régia: Nós não cobrimos a espetacularização, a morte, o incêndio. A gente cobre processos. Ao longo desse 40 anos, esse caminho nos dá a possibilidade de contar histórias muito comoventes, como a das parteiras da floresta em busca de reconhecimento, ou o drama do escalpelamento, ou das poetizas da Amazônia. Essas mulheres são as matrizes das histórias que devemos contar.
Agência Brasil: Quais os períodos mais marcantes?
Mara Régia: Esses períodos que coroam a nossa existência são frutos de experiências-limite. Por duas vezes, me senti em situação muito vulnerável. Certa vez, em Lucas do Rio Verde (GO), em que fui ministrar uma oficina sobre agricultura familiar, cheguei bem na hora que um avião estava pulverizando a cidade inteira com agrotóxico paraquat. Quando, na verdade, deveria estar restrita à lavoura. Os malefícios dessa intoxicação puderam ser sentidos muito tempo depois. As mulheres que estavam grávidas, por exemplo, tiveram o leite materno contaminado. Outra vez foi quando participei de mutirão de recuperação cirúrgica das vítimas de escalpelamento. Homens que perderam pênis, mulheres que tiveram o couro cabeludo arrancado e até a orelha arrancadas. Quando se perde a orelha, onde colocar o óculos, que é tão importante para sobrevivência delas? Inclusive, na EBC fizemos também campanha para ter as máquinas para fazer peruca e arrecadação de cabelo natural. O cabelo sintético não é adequado para quem vive na Amazônia.
Agência Brasil: Quantos programas de Viva Maria? Tem ideia?
Mara Régia: Até onde eu consegui contar, são 9,6 mil. Estamos a caminho das 10 mil edições desse programa que se alimenta de histórias dessas mulheres que são a razão da minha vida.
Agência Brasil: Essas mulheres revelam reconhecimento pelo programa ter mudado a história de vidas delas. Como você vê define esse sentimento 40 anos depois da primeira edição?
Mara Régia: Em uma palavra, não há menor condição de definir esse sentimento. Eu agradeço a generosidade e a cumplicidade que a rádio estabelece. Falamos numa vibração que faz acreditar no poder de comunicação. Estamos lançando sementes de alegria. E sementes reais concretas de árvores que já plantamos. São mais de 1 milhão. Esses relatos delas são uma grande recompensa por essa trajetória. Ouvir dessas Marias esses relatos de tamanha sororidade é como se a gente fosse recompensado por todas as dores. É como eu me sinto do alto dos meus 70 anos de vida, e 40 de Viva Maria.
Agência Brasil: O programa é muito premiado. E você uma das jornalistas mais premiadas do Brasil. O que representa pra você?
Mara Régia: São mais de 30. Entre prêmios, medalhas, diplomas… Posso citar o Prêmio Ayrton Senna que me deu uma imensa alegria pela história que ele contempla. Uma menina que foi vendida em Aripuanã do Norte (MT), que havia sido vendida pelo pai três vezes, E ela pediu ajuda pelo rádio para proteger as irmãs. Uma história dilacerante.. Graças a uma rede que formamos com entidades como Andi, conseguimos chamar o Conselho Tutelar para salvar a menina. É uma história que justifica a nossa profissão. Mais recentemente, recebi o Prêmio Audálio Dantas, pelo conjunto da obra, que foi também muito significativo para mim.
Agência Brasil: Quais são os sonhos para os próximos 40 anos?
Mara Régia: Que meus netos (duas meninas e um menino) reconheçam esse trabalho. Que foi uma tentativa da avó para que eles tivessem direito a uma vida mais feliz, justa e igualitária.
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