Irmã de sobrevivente diz que lembra do cheiro de creolina com sangue




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Era um sábado de 1992, dia de eleições municipais. Naquele dia de outubro, Denise Monteiro entrou na antiga Casa de Detenção do Carandiru, na zona norte da capital, em busca de notícias sobre o irmão, que ela chama, carinhosamente, de Nenê. A primeira coisa que sentiu ao chegar naquele lugar, conta, foi um cheiro de creolina misturado com sangue. “Lembro desse cheiro até hoje”, afirmou, durante um seminário promovido pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em memória aos 30 anos do pior episódio já ocorrido em presídios brasileiros: o Massacre do Carandiru.

Um dia antes, a polícia havia entrado na Casa de Detenção para conter um motim de presos que havia começado no Pavilhão 9, local onde ficavam encarcerados os réus primários, aqueles que cumpriam sua primeira pena de prisão. Grande parte deles estava ali aguardando julgamento. Na ação policial, que o Ministério Público mais tarde denunciou como sendo violenta e excessiva, 111 detentos foram mortos. Nenhum policial ficou ferido.

“Quando chegamos [na Casa de Detenção] tinha uma lista com o nome dos falecidos. Não achamos o nome dele [do irmão dela, Maurício Monteiro]. Quando a gente estava entrando lá, tinha um pessoal desesperado porque tinha gente que não tinha o nome na lista, mas tinha sido assassinado”, contou, durante o seminário na Unicamp. “Mas quando vimos o Nenê, quando vi meu irmão, fiquei tranquila. Aquele dia foi chocante”, relembrou.

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“Quando chegamos [na Casa de Detenção] tinha uma lista com o nome dos falecidos. Não achamos o nome dele [do irmão dela, Maurício Monteiro]. Quando a gente estava entrando lá, tinha um pessoal desesperado porque tinha gente que não tinha o nome na lista, mas tinha sido assassinado”, contou, durante o seminário na Unicamp. “Mas quando vimos o Nenê, quando vi meu irmão, fiquei tranquila. Aquele dia foi chocante”, relembrou.

Monteiro chegou à Casa de Detenção em 1990 e passou a viver no terceiro andar do Pavilhão 9. “Lembro de pessoas sobre a tutela do Estado sendo assassinadas”, disse ele à Agência Brasil. “Não houve conversa, os policiais já chegaram atirando”, contou.

“Em meio a toda aquela loucura, havia pelo menos um policial, chamado de Tenente, que estava fazendo o possível para que houvesse menos mortes. E, no momento em que iriam atirar dentro de nossa cela, ele evitou o acontecido. Mas, para eu chegar vivo ao pátio, foi só com a misericórdia de Deus”, lembrou.

Naquele dia 2 de outubro de 1992, mesmo dia em que celebrava seu aniversário, o escritor Andre du Rap teve que fingir que estava morto para sobreviver. “Eu fui dado como morto. Meu nome saiu na lista [de mortos]”, contou, durante evento na Unicamp. “Eu comemoro meu aniversário duas vezes: pelo dia que eu nasci e pelo dia em que eu sobrevivi”, destacou.

Sua história no Carandiru foi transformada no livro Sobrevivente Andre Du Rap: do Massacre do Carandiru. E, foi assim, que ele descobriu a literatura e as artes. “Tive o privilégio de, naquele momento, dia do meu aniversário, dia 2 de outubro, tomar uma mordida de um cachorro na cabeça, quatro facadas, um policial quebrar o meu braço em três lugares e ter de me jogar dentro de um elevador e ficar com vários cadáveres sobre mim [para sobreviver]”. Sua história, inclusive, aparece no filme Carandiru, de Hector Babenco, baseado no livro Estação Carandiru, de Dráuzio Varella.

“O Brasil é um país muito violento e de uma história de violências. E não estamos só falando de estatísticas de violência, mas do quanto essa violência foi central pra gente ser o país que é. A gente tem que pensar que nós somos um país colonial e que a colonização foi uma ação violenta, de genocídio, que dizimou populações nativas e povos indígenas, que escravizou populações no continente africano e as trouxe e as manteve sob condições desumanas e de muita violência como escravas no Brasil. Ou seja, nossa economia, nossa existência como país, está fundada em uma violência estruturante”, disse Frederico de Almeida, professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e coordenador do Laboratório de Estudos de Política e Criminologia (PolCrim).

Violência que, segundo ele, continua ocorrendo pelo país. “Nós estamos falando de massacres realizados em presídios, nós estamos falando de chacinas, nós estamos falando de violência contra os povos originários, nós estamos falando de violência contra os trabalhadores rurais sem-terra, nós estamos falando de uma letalidade policial cotidiana e crescente. São violências que se reproduzem, se perpetuam e que aumentam na nossa democracia. Essa é uma marca do país e é um desafio que o país não conseguiu superar”, disse o professor da Unicamp.

Para Monteiro, o Brasil só irá superar essa marca de violência investindo em políticas públicas, principalmente relacionadas a uma “educação libertadora”.

“É preciso entender o que a história nos diz entre erros e acertos e clamar por políticas públicas efetivas, principalmente ,voltadas à saúde e educação”, disse.

Ação policial excessiva

Em entrevista à Agência Brasil, o promotor Márcio Friggi, que atuou em quatro dos Tribunais do Júri que responsabilizaram os policiais pelo Massacre no Carandiru, disse que o que aconteceu naquele dia 2 de outubro, há 30 anos, foi “uma ação policial em excesso”.

“Em um primeiro momento, existem possíveis justificativas jurídicas porque havia um motim instalado e o Estado tem o dever de debelar o motim. O problema é qual foi a maneira escolhida [para isso]. Eles [os policiais] fizeram de uma maneira arbitrária, violenta, com violência desnecessária, para além do necessário. Esses excessos intencionais, que chamamos de excesso doloso, afasta qualquer justificativa inicial de que eles agiram em legítima defesa ou em estrito cumprimento do dever legal. Todas [essas justificativas] ficam afastadas quando existe o excesso intencional”, destacou o promotor.

Durante a entrevista, ele citou o caso de Ronaldo Gasparino, que estava preso na Casa de Detenção do Carandiru naquela época. Gasparino era um preso provisório e ainda não tinha sido julgado quando os policiais entraram no Carandiru naquela tarde de sexta-feira. Ele acabou sendo morto.

“Qual o crime do qual ele era acusado? Ele entrou em um coletivo sozinho, com uma faca na mão, chegou no cobrador e disse assim: ‘Pelo amor de Deus, meus filhos estão passando fome. E eu preciso comprar leite para dar para as minhas crianças. Me dá o que você tem aí de dinheiro’. O cobrador entregou a ele o equivalente a R$ 12 hoje. Ele então saiu do ônibus e foi preso poucos minutos depois disso. Existe roubo aí? Existe. Mas vejam as circunstâncias desse roubo”, questionou o promotor.

“Esse indivíduo, sem qualquer outra passagem criminal, com um problema mais social do que jurídico, teve a prisão dele provisória convertida em pena de morte a critério de policiais militares que entenderam que esse era o melhor caminho para se debelar uma rebelião. Será que esse é o caminho que a sociedade entende como mais adequado para construir um verdadeiro estado democrático de direito? Será que realmente as pessoas ainda acreditam que a execução desse tipo de pessoa por policiais militares é um caminho adequado para se ter garantida a segurança e a justiça social? Casos de massacres como o do Carandiru e outros massacres e execuções Brasil afora não apontaram em diminuição do índice de criminalidade”, diz Friggi.

A Agência Brasil procurou os advogados dos policiais. Um deles informou à reportagem que não está mais no processo. O outro não respondeu aos pedidos de manifestação.

 

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