Decisão de reintegração de posse de uma área em Maricá (RJ), ocupada por cerca de 30 famílias de baixa renda, vem gerando preocupação na seccional fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ). Por meio de sua Comissão de Direitos Humanos, a entidade vem empreendendo esforços a favor de uma mediação tanto no âmbito judicial como no âmbito administrativo.
A área é parte da fazenda pertencente à empresa Rio Fundo Agropecuária, no distrito de Ubatiba. No local, há um imóvel chamado de Casa Grande, onde as famílias se alojaram em setembro, dando início à Ocupação Ecovila Maricá. Os ocupantes alegam que o lugar estava abandonado e o imóvel vazio. Nos autos do processo, a Rio Fundo Agropecuária sustenta que explora atividade comercial no local e solicitou a reintegração de posse. A Agência Brasil tentou sem sucesso contato com a empresa.
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Os advogados Anna Cecília Faro Bonan, Hugo Ottati e Jhonathan Mattos, integrantes da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, acompanham de perto a situação. De acordo com Bonan, o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) da empresa está inativo na Receita Federal. “Se estão produzindo alguma coisa, estão sonegando impostos.”
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro informou à Justiça que realizou uma vistoria no local e encontrou de 20 a 30 cabeças de gado. Ainda de acordo com o órgão, o imóvel foi encontrado completamente vazio e, em um levantamento, foi constatado que ele está penhorado por força de decisões proferidas em três diferentes ações judiciais.
Segundo o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), que responde pela coordenação da ocupação, as famílias passaram a viver no local porque o município não destinou um terreno para a construção da Ecovila Maricá, o que estaria em consonância com a legislação. Um projeto chegou a ser apresentado, mas não foi adiante.
O movimento se refere à Lei Municipal 2.864/2019, que cria o Centro de Tecnologia Agrofamiliar, voltado para a formação de produtores rurais, e o Programa Comunas Agroecológicas, em apoio ao desenvolvimento de atividades econômicas de base comunitária em benefício de inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). A lei estabelece que o município poderá disponibilizar terras para assentar as famílias e, inclusive, propor desapropriações para fins de interesse público.
Reintegração de posse
A decisão de reintegração de posse foi assinada no dia 26 de outubro pelo juiz Vitor Porto dos Santos, da 2ª vara cível da comarca de Maricá. No dia 7 de novembro, uma visita foi realizada conjuntamente pela equipe da comissão de direitos humanos da OAB-RJ e pelo Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Luiza Mahin (Najup), projeto de extensão vinculado à Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Elas apontaram em relatório que as famílias encontram-se em estado de extrema vulnerabilidade socioeconômica, composta majoritariamente por pessoas desempregadas e mulheres, incluindo várias mães solo que passaram por situação de violência doméstica e não obtiveram o benefício do auxílio-aluguel, uma das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha. Também relatam que já havia no local um movimento para a reintegração de posse.
“Fomos surpreendidos com tamanho aparato da Polícia Militar presente, com uma ostensiva a desproporcional presença de policiais militares portando fuzis e granadas, no ímpeto de causar constrangimento e coagir as pessoas à desocupação imediata, tensionando o ambiente, e não contribuindo, de forma efetiva, para uma mediação do conflito fundiário existente”, registra o texto.
Segundo Bonan, a presença bélica foi excessiva já que as famílias são compostas em maior parte por mulheres e idosos. A reintegração de posse, no entanto, não foi cumprida: o oficial de Justiça avaliou que não havia condições mínimas necessárias, já que não havia garantia de acolhimento das famílias em abrigos localizados no município, nem mesmo das crianças e idosos. Ele devolveu o mandado para o juízo.
A Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e a Najup já se manifestaram no âmbito do processo judicial, pedindo reconsideração da decisão considerando que a Defensoria Pública deveria ter sido intimada previamente para se manifestar, o que não ocorreu. Segundo alegam, as famílias foram privadas do direito de defesa. Além da atuação na esfera judicial, as duas entidades se movimentam no âmbito administrativo: foi apresentado pedido formal à prefeitura de Maricá para instauração de uma mesa de negociação.
“Moradia é um direito humano fundamental e a demanda das famílias que hoje se encontram na Ocupação Ecovila Maricá é urgente e necessária, não cabendo, neste contexto, a inércia e a omissão por parte do poder público, para um melhor deslinde do conflito que se apresenta”, registra a nota divulgada pela OAB-RJ. Procurado pela Agência Brasil, o município não deu retorno.
Decisão do STF
A instauração de uma mesa de negociação, segundo a OAB-RJ, é necessária para atender determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828. Trata-se do processo que, desde junho de 2021, havia suspendido em todo o país as ordens de remoção e despejos de áreas coletivas habitadas. A decisão foi tomada para resguardar o direito à moradia em meio à pandemia de covid-19, que trouxe aumento de insegurança social e econômica para a população mais vulnerável.
A suspensão durou até o fim do mês passado, quando o ministro Luís Roberto Barroso negou a renovação do prazo por entender que há um arrefecimento dos efeitos da pandemia. No entanto, foram fixados pré-requisitos a serem observados pelos tribunais. Conforme a nova decisão de Barroso no âmbito da ADPF 828, antes de qualquer decisão judicial, comissões de mediação devem ser instaladas.
“Por acreditar no diálogo e na capacidade dos poderes públicos lidarem com os conflitos fundiários com política pública, e não com polícia e violência, a fim de reduzir o déficit habitacional que assola o nosso estado, reiteramos a necessidade de que a Prefeitura de Maricá instaure a mesa de negociação, em observância a decisão do STF na ADPF, bem como ao que dispõe a legislação e o texto constitucional sobre a matéria”, reiterou a OAB-RJ.