O Tribunal de Justiça de São Paulo faz hoje (29) novo julgamento do caso do repórter fotográfico Sérgio Silva, que perdeu o olho esquerdo após ter sido ferido com uma bala de borracha da Polícia Militar (PM). O incidente aconteceu quando ele fazia a cobertura de manifestação contra o aumento da tarifa no transporte público, na capital paulista, em junho de 2013. A corte pode se basear em orientação do Supremo Tribunal Federal (STF) relativa a caso semelhante ao de Silva, o do também fotojornalista Alex Silveira.
Em 2013, a defesa de Sérgio Silva acionou a Justiça para que o governo de São Paulo fosse responsabilizado e pediu indenização de R$ 800 mil por danos morais e R$ 400 mil por danos estéticos. Além disso, exigiu que o Estado pagasse cerca de R$ 3,8 mil por danos materiais e pensão mensal no valor de R$ 2,3 mil.
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Na fase da tramitação do processo, Sérgio Silva aguardou mais de três anos até que tivesse o primeiro desfecho sobre a questão. Em agosto de 2016, o juiz Olavo Zampol Junior, da 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, decidiu que o fotógrafo não tinha direito ao que pleiteava. No entendimento do magistrado, a responsabilidade pelo ferimento era do profissional, porque ele teria assumido o risco ao se posicionar entre manifestantes e a polícia, “permanecendo em linha de tiro, para fotografar”. Com a sentença, entidades da sociedade civil, colegas de profissão e pessoas que tomavam conhecimento do caso por meio das redes sociais indignaram-se e mobilizaram-se em apoio ao fotógrafo, que decidiu recorrer à segunda instância.
A defesa ainda tentou interpor recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ), seguido de agravos, mas teve todos negados. “No STF, quando o processo do Alex Silveira, fotojornalista que também perdeu um olho em manifestações no ano de 2000, foi pautado e serviria para orientar casos semelhantes, pedimos ao relator que o processo do Sérgio fosse 'afetado' – o termo é jurídico -, ou seja, que o decidido no caso do Alex servisse também para orientar a decisão no caso do Sérgio”, explica o advogado Lucas Andreucci, que representa Sérgio Silva.
“Alexandre de Moraes [ministro do STF] nos deu razão e devolveu o processo ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde ficou aguardando o julgamento do caso do Alex. Quando foi julgado, o STF estabeleceu o seguinte: 'É objetiva a responsabilidade civil do Estado em relação a profissional da imprensa ferido por agentes policiais durante cobertura jornalística, em manifestações em que haja tumulto ou conflitos entre policiais e manifestantes. Cabe a excludente da responsabilidade da culpa exclusiva da vítima, nas hipóteses em que o profissional de imprensa descumprir ostensiva e clara advertência sobre acesso a áreas delimitadas, em que haja grave risco à sua integridade física'. É esse entendimento que agora tem de ser aplicado no caso do Sérgio, pois o tribunal julgou de outra maneira”, acrescenta.
Violência e indiferença do Estado
Em entrevista à Agência Brasil, o repórter fotográfico contou que foi o suporte de diversas pessoas, o que garantiu que pudesse, inclusive, receber cuidados médicos. Na época do acontecimento, ele trabalhava como freelancer, isto é, na informalidade e sem vínculo com qualquer redação de jornalismo. Além disso, era “arrimo de família”, ou seja, parentes dependiam de sua renda, que já era pouca e o impedia de manter uma reserva de dinheiro para emergências. Até hoje, parte da família depende dele para se sustentar.
No dia seguinte à violência que sofreu por parte de agentes do Estado, Sérgio Silva já tinha em mãos um exame que confirmava a perda da visão. “Eu sofri a violência numa quinta-feira à noite. Na sexta-feira, de manhã, eu já tinha, basicamente, um laudo médico constatando todos os danos físicos que haviam ocorrido no meu globo ocular. Ali, o médico já estava dando um indício de que: 'olha, dificilmente tua visão vai conseguir se sustentar com tanto ferimento'. São diversos danos em partes de composição do nosso olho que nem eu mesmo fazia ideia da existência”, relatou.
O fotógrafo procurou outros médicos, a fim de obter novas avaliações diante do primeiro laudo, custeando as consultas do próprio bolso e com doações. “Corri atrás, fui com esperança ainda de tentar, de alguma forma, buscar outros especialistas que pudessem dar algum laudo diferente. Mas, isso, eu não tive amparo nenhum do Estado. Em nenhum momento, o Estado tentou, de alguma maneira, cuidar desse dano causado pela violência. Fui, por vias particulares, busquei especialista em traumas oculares, aqui em São Paulo, uns dois, três meses depois, para ouvir outra opinião e ela foi unânime de que não havia mais capacidade de enxergar”, disse.
O olho atingido pela bala da PM apresentou lesões profundas, que causaram a atrofia do órgão. “Isso, fisicamente, estava me fazendo mal, porque doía. Era uma dor que não passava nunca. E também, esteticamente, me afetava muito psicologicamente. Foi a partir daí que um médico me passou a possibilidade de, por exemplo, fazer uma extração desse globo ocular que já está atrofiado e não tem funcionalidade nenhuma e fazer a inserção de uma prótese ocular”, lembrou Silva.
“O que eu não consigo mensurar é a dor psicológica que permanece até hoje. Ainda tenho muito trauma pelo que aconteceu. Essa dor psicológica, inclusive, é alimentada pela própria morosidade do Estado. Quanto mais o Estado nega assumir essa responsabilidade e reparar o dano que me provocou, por meio da indenização, isso também vai se tornando violento. São dez anos convivendo com a memória daquele episódio, a dor física de tudo que aconteceu, mas também a perpetuação pelo sistema judiciário”, afirmou ele, que conseguiu custear sessões de psicoterapia somente de 2018 em diante, quando teve “um pouco mais de estabilidade financeira”.
Para dar continuidade ao tratamento e à bateria de exames, Silva tinha que se deslocar de Osasco até o bairro de Paraíso, na região central da capital, duas ou três vezes por semana, trajeto que fazia de táxi. Somavam-se a esses gastos outros, como os de remédios para atenuar a dor que sentia na região do olho. “Quando entrei com a ação, um dos meus pedidos era que o Estado se responsabilizasse pelos custos que estava tendo com o tratamento, e isso foi a primeira violência judicial que aconteceu, porque foi muito rápido. De pronto, já negaram”, complementou.
Foi também pelos atos de uma rede de pessoas que se solidarizaram com ele que conseguiu continuar sua atuação na fotografia. Amigos o ajudaram a superar o choque e o incentivaram a seguir fotografando, ao mesmo tempo em que ele cogitava mudar de ramo. Quando retomou as atividades, desenvolveu o projeto Piratas Urbanos, uma série de fotografias em que as pessoas vestem um tapa-olho, que começou com registros de integrantes de seu círculo social.
“Isso também foi uma das partes mais difíceis, porque eu não conseguia olhar para a minha câmera fotográfica. Me dava medo de pegar nela, me remetia muito à violência. Eu tentava imaginar uma possível nova profissão e nunca conseguia encontrar uma resposta porque, naquele momento, havia escolhido a fotografia para a minha vida. Então, eu só sabia fazer aquilo, naquela época”, afirmou.
Para Paulo Zocchi, um dos diretores do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, entidade que acompanhou o julgamento, o que se espera é que haja justiça. “E o que é justiça? É voltar atrás na história bizarra de que o repórter fotográfico é o responsável por ter tomado um tiro no olho. O pleito dele de indenização é totalmente justo, porque, evidentemente, a PM e o Estado têm que ser responsabilizados pela agressão e o dano permanente causado”, afirma Zocchi, que é também vice-presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).
Para ele, a primeira questão que o caso levanta diz respeito à razão por que as autoridades policiais disparam tiros contra profissionais de imprensa, postura que indica que tratam manifestações como algo violento e que, portanto, merecem repressão. Os casos de Alex Silveira e de Sérgio Silva, diz ele, comprovam que esse tipo de investida significa um ataque à liberdade de imprensa e que, na realidade, a polícia deveria fazer a segurança dos jornalistas, repórteres fotográficos e cinegrafistas, não o oposto. “Não é um caso isolado. Agressões da PM a jornalistas existem inúmeras”, argumenta.
“Na nossa opinião, a PM trata manifestações públicas de forma inaceitável, violenta. Em vez de garantir o direito à manifestação, ataca os manifestantes. E a questão, do ponto de vista da polícia, é que os jornalistas registram a agressão, os jornalistas testemunham as agressões. O jornalista, como alvo da polícia, é expressão da necessidade de impedir que os atos de violência contra manifestantes sejam registrados”.
A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública e aguarda retorno.