A valorização de pesquisadores, o reajuste da merenda escolar e a abertura de diálogo com a sociedade civil organizada e entidades científicas marcaram os primeiros 100 dias da gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na educação e na ciência e tecnologia. Na avaliação de especialistas, entretanto, diante da descontinuidade de políticas nessas áreas nos últimos anos, ainda há muito o que avançar.
Para a professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) Catarina de Almeida Santos, no campo da educação, os primeiros 100 dias do governo estão aquém daquilo que a sociedade que debate o tema esperava. Segundo ela, apesar de ações pontuais importantes como o reajuste da merenda, os repasses para obras e os grupos de trabalho, o Ministério da Educação (MEC) já poderia ter apresentado políticas fundantes e essenciais para o setor.
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“Obviamente que você não pode avaliar todo o governo pelos 100 dias, o problema é quando você tem um governo como governo Lula depois de um governo Bolsonaro, você espera o anúncio, pelo menos, de ações contundentes nesses primeiros dias.”
Já na ciência e tecnologia, o presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), Vinícius Soares, avalia que houve uma “virada de chave muito grande” do governo passado para o atual, especialmente em relação ao diálogo com a comunidade científica e entidades acadêmicas, além das proposições na área. Ele destacou o reajuste das bolsas de pesquisa.
“Para nós, é uma pauta muito cara e ter o presidente da República anunciando esse reajuste das bolsas, em menos de 100 dias do governo, é muito simbólico. Mostra que, de fato, o governo tem compromisso com a ciência nacional”, disse Soares.
Após 10 anos sem correção, Lula reajustou o valor das bolsas de pesquisa de 25% a 200%. Os novos valores valem tanto para as bolsas pagas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), vinculada ao MEC, quanto aquelas pagas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).
“Houve uma virada de chave muito grande do governo passado para o atual, especialmente em relação ao diálogo com a comunidade científica e entidades acadêmicas, além das proposições na área.”
Mesmo com esse avanço, Soares explicou que os reajustes ainda não conseguiram recuperar toda defasagem histórica das bolsas, por isso, a entidade defende a implementação de um mecanismo anual de reajustes. “Para que a gente não tenha que, ano a ano, ter que ficar fazendo luta política e convencendo o governo da necessidade da valorização dos pesquisadores”, afirmou.
Além disso, para a ANPG, há a necessidade de se aprovar direitos trabalhistas e previdenciários para os jovens pesquisadores. A entidade vem formulando propostas nesse sentido que serão apresentadas ao governo e ao Congresso Nacional. “Não achamos que seja justo passarmos dois anos no mestrado e quatro anos no doutorado, e esse tempo ficar sem ser contabilizado para nosso tempo previdenciário, já que somos considerados trabalhadores da ciência e tecnologia, trabalhadores do desenvolvimento nacional. Temos uma condição laboral, temos uma dedicação exclusiva, só não temos de fato uma cesta de direitos básicos que possa regulamentar essa relação trabalhista.”
Solução aos desafios
À Agência Brasil, a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, afirmou que a pasta está construindo uma agenda de implantação de projetos estruturantes para o desenvolvimento de “soluções para os desafios do país, como combate à fome, reindustrialização, agenda climática, transição energética e transformação digital”.
“Após quatro anos de desmonte das políticas públicas de ciência, o Brasil vive um momento excepcional de sua história. Sob a liderança do presidente Lula, temos o compromisso de enfrentar as desigualdades, resgatar valores civilizatórios, fortalecer a democracia, unir e reconstruir o país. A política negacionista do governo anterior asfixiou a ciência brasileira.”
“Em menos de 100 dias, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação implementou um conjunto de medidas que apontam para a recuperação do orçamento e o resgate da capacidade científica do país”, completou a ministra.
A retomada e o fortalecimento do diálogo com as comunidades científica e acadêmica marcaram os primeiros 100 dias do MCTI. A ministra Luciana Santos já esteve em encontros com diversas entidades e defendeu que a pasta reassuma o protagonismo das políticas públicas e o seu papel de indutor do desenvolvimento científico e tecnológico em articulação com outros órgãos.
Neste sentido, por exemplo, o governo retomou política de desenvolvimento industrial da saúde, com a expectativa de produzir 70% dos insumos do Sistema Único de Saúde (SUS) no país. Segundo o MCTI, a ação retoma as políticas públicas para a reindustrialização nacional, a redução da dependência produtiva e tecnológica do mercado externo, para o financiamento da ciência, tecnologia e inovação e para o acesso universal ao SUS.
Para o pesquisador Vinícius Soares, a área de ciência e tecnologia é fundamental para reindustrializar e construir a soberania do país. “No caso da saúde, passamos por uma pandemia e nós não tínhamos insumos suficientes, por exemplo, para produção de máscara, de EPI que são produtos que sequer tem alguma tecnologia mais rebuscada. Então, precisamos avançar nessa frente para reindustrializar o país especialmente em áreas que são muito caras ao povo brasileiro”, argumentou.
Na mesma linha, o governo também está avançando no processo de atualização da política nacional de semicondutores (chips) e de estímulo à indústria do setor, que é estratégico para a agenda de reindustrialização do país. No último sábado, Lula retirou o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), vinculado ao MCTI, do Programa Nacional de Desestatização e deve reverter a liquidação da estatal, autorizada em 2020.
“A Ceitec é a única empresa na América Latina capaz de desenvolver um chip da concepção à aplicação final. A empresa projeta, fabrica e comercializa circuitos integrados para diferentes aplicações, desempenhando papel estratégico no desenvolvimento da indústria de microeletrônica do Brasil”, explicou o MCTI.
A pasta ainda tem o compromisso com a recomposição do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico (FNDCT), “maior fonte de financiamento da ciência brasileira”. O governo aguarda análise, pelo Congresso Nacional, da abertura de crédito suplementar no valor de R$ 4,18 bilhões em favor do MCTI. Com isso, os recursos do FNDCT, que foram contingenciados no governo passado, alcançarão R$ 9,6 bilhões em 2023.
Fixação de profissionais
Uma nova Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação também deve ser construída com a recriação do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, principal fórum de debates do governo com a sociedade nessa área.
Para Vinícius Soares, da ANPG, o governo precisa pensar na fixação de pesquisadores no país e na manutenção desse corpo científico na profissão. Segundo ele, dois fenômenos sociais no Brasil são a fuga de cérebros para fora do país, em busca de melhores condições de pesquisa, e a migração de mestres e doutores para profissões de menor pensamento científico e tecnológico.
“Queremos levantar esse debate, para que possamos construir um plano de recuperar esse contingente populacional, esses cérebros aqui que podem contribuir, inclusive, para retomar o nosso desenvolvimento, para nos retirar dessa crise econômica e social que ainda enfrentamos”, disse. “Temos proposto que o governo faça um estudo robusto sobre esses fenômenos para diagnosticarmos a dimensão desse problema e termos uma alternativa para que a ciência seja uma perspectiva para juventude. Nós avaliamos que hoje ela não tem sido mais uma perspectiva devido toda essa conjuntura de desvalorização que vimos sofrendo”, completou.
Cientista
Soares destaca ainda a simbologia da indicação do cientista Ricardo Galvão para a Presidência do CNPq . “O Ricardo que foi muito atacado no governo anterior, foi perseguido, inclusive foi demitido do seu posto, isso para a comunidade acadêmica e científica é muito simbólico, representa um compromisso com a ciência e tecnologia do país”, disse.
O nome de Galvão ganhou destaque no noticiário em 2019, quando ele foi exonerado da diretoria do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) após ter divulgado resultados do monitoramento via satélite do desmatamento da Amazônia, que mostravam recordes na derrubada de árvores. À época, o então presidente Jair Bolsonaro criticou a divulgação, dizendo que ela “prejudicava o país”.
Entre outras ações nesses primeiros 100 dias de governo, uma resolução do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), colegiado do MCTI, proibiu o uso de animais em testes de cosméticos, perfumes e produtos de higiene pessoal.
A pasta ainda expandiu o monitoramento e alerta de desastres naturais para 1.835 municípios do país, atendendo 70% da população. Em colaboração com outros ministérios e a comunidade científica, o MCTI também trabalha em um conjunto de ações para a produção de dados meteorológicos, o monitoramento climático, a emissão de alertas de risco e as ações de prevenção e redução dos impactos provocados por eventos extremos.
100 dias na educação
Já na educação, os programas prioritários do MEC ainda não foram anunciados, mas algumas ações colocadas em prática “marcam a mudança de postura e de perspectiva”, segundo o secretário-executivo do MEC, Gregório Grisa.
Em publicações nas redes sociais, ele citou o que foi feito nesses primeiros 100 dias e destacou que outras iniciativas virão fruto da participação social. “O novo governo Lula fez em três meses na educação mais do que o anterior em 4 anos. Estamos falando de coisas que mudam a vida concreta das pessoas e de ações que retomam uma postura republicana, essencial em um governo democrático”, escreveu.
Entre os destaques, além dos reajustes das bolsas de pesquisa, Grisa citou a atualização dos repasses para merenda escolar, que estavam congelados há muitos anos e destacou que muitas crianças dependem da alimentação na escola como principal refeição do dia. O aumento no valor repassado pelo governo federal para estados e municípios custearem a merenda escolar na rede pública de ensino chega a 39%.
Na mesma pauta, em parceria com outras pastas, o Ministério da Educação assinou Acordo de Cooperação Técnica para promoção de alimentação saudável nas escolas públicas do país e fortalecer a agricultura familiar.
O MEC também liberou, por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), cerca de R$ 256 milhões para a continuidade de 1.236 obras em escolas de educação infantil e fundamental, além de quadras esportivas.
Segundo Grisa, “o caráter democrático e popular” do Fórum Nacional de Educação também foi restaurado. Entre as atribuições do fórum estão o acompanhamento da execução e do cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE), que fixa metas para melhorar a educação. O fórum também deve coordenar as conferências nacionais de educação e promover a articulação das conferências com as conferências regionais, estaduais e municipais que as precederem.
Além disso, o MEC criou grupos de trabalho para discutir o Fies, o Fundeb e a formação de professores e abriu uma consulta pública para tratar da política de ensino médio no país. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) também anunciou pesquisa sobre a realidade da alfabetização no Brasil.
Pautas prioritárias
Nos últimos dias, o governo determinou ainda suspensão do cronograma de implementação do novo ensino médio. Entretanto, a reivindicação de entidades estudantis e de muitos especialistas é pela revogação total dessa política.
Para a professora da UnB Catarina de Almeida Santos, a revogação foi uma questão central levantada ainda na transição, mas há uma resistência do próprio MEC para isso. Ela cita ainda a necessidade de revogar o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) e de desenvolver de uma agenda pela desmilitarização das escolas. Segundo a especialista, também são importantes retomada de políticas de educação inclusiva e a recomposição do Conselho Nacional de Educação.
“As políticas maiores, fundantes, do Ministério da Educação não apareceram nos primeiros 100 dias. Ao contrário, dá-se indício de continuidade naquilo que a sociedade demandou, que os educadores e estudantes demandaram, que deveria ser imediatamente revogada, repensadas e retomadas. Está muito a passos lentos, como se a gente pudesse continuar os programas e as políticas dos governos anteriores, tanto do Michel Temer como do governo Bolsonaro”, disse.
Ela cita, por exemplo, a falta de articulação do Fórum Nacional de Educação para realização das conferências e debate do novo Plano Nacional de Educação (PNE). O plano atual vence no ano que vem e, segundo Catarina, as metas não foram cumpridas. “Era uma das agendas que a gente esperava com muita urgência do Ministério da Educação”, disse.
Segundo a professora, o MEC é um ministério chave nos processos formativos, na retomada da construção da escola como um espaço de debate e de formação crítica e de combate a agendas extremistas. “Era o ministério que tinha que começar o governo com muitas ações contundentes no sentido de democratizar a educação, de combater todos os elementos que vem alimentando o ódio na sociedade”, disse.
Em declarações recentes, o ministro da Educação, Camilo Santana, afirmou que o foco do MEC, no momento, é a criação de um programa nacional de alfabetização, a ampliação do ensino em tempo integral e a expansão da conectividade nas escolas públicas. Ainda em janeiro, Lula sancionou a Política Nacional de Educação Digital (Pned) para garantir o acesso, sobretudo das populações mais vulneráveis, a recursos, ferramentas e práticas digitais. O objetivo é que, até o final de sua gestão, todas as escolas públicas do Brasil estejam conectadas com internet de banda larga.
Formação de professores
A qualidade da formação inicial de docentes também está no radar do MEC, com a promessa de aumentar o número de bolsas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência e do Programa Residência Pedagógica, concedidas pela Capes.
Segundo Catarina de Almeida Santos, muitos dados já apontam para um apagão docente, com a queda de entrada de estudantes em cursos de licenciatura. “É uma preocupação que deveríamos ter nesse momento. Muitos professores estão desistindo da carreira diante da situação que a gente vive no país, de desvalorização, das condições de trabalho, das ameaças. Então, os jovens não querem entrar na licenciatura e os que estão entrando estão em cursos de educação à distância da pior qualidade.
As escolas médicas estão na pauta do governo, que já autorizou a abertura de novas vagas de cursos de medicina em regiões do país onde faltam profissionais.
A Agência Brasil pediu posicionamento do MEC sobre as ações da pasta, mas não teve retorno até a publicação desta matéria.