Diante da dificuldade de se concluir as negociações em torno da repactuação do processo de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e o governo federal oferecem diferentes explicações. As tratativas se arrastam desde o ano passado. Segundo o MPMG, as partes envolvidas aguardam uma posição da nova gestão do governo federal, que se iniciou em janeiro. A Advocacia-Geral da União (AGU) apresenta uma justificativa diferente. Ela afirma que o governo já se posicionou e sustenta que há divergências ainda não superadas entre os envolvidos.
No episódio, foram liberados cerca de 39 milhões de metros cúbicos de rejeito que escoaram pela bacia do Rio Doce e impactaram dezenas de municípios mineiros e capixabas. Morreram 19 pessoas. Passados mais de 7 anos da tragédia, as medidas de reparação são consideradas insatisfatórias tanto pelas entidades que representam os atingidos, como por representantes das instituições de Justiça e dos governos envolvidos.
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Há duas semanas, o MPMG lançou o podcast Meu Ambiente, com o objetivo de discutir desafios ambientais com especialistas convidados e dar visibilidade a ações práticas. Os episódios são quinzenais e o primeiro deles tratou das duas grandes tragédias da mineração ocorridas no estado de Minas Gerais: o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, no ano de 2015, e o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, no ano de 2019.
O procurador-geral de Justiça do MPMG, Jarbas Soares Júnior, estava entre os convidados. “Nós precisamos resolver isso rápido, porque já são sete anos e meio que as pessoas estão passando as maiores carestias que pode se imaginar. Sem ter casa, sem ter os seus modos de produção, sem ter vida, vivendo de transferência de recursos”, defendeu.
Jarbas disse que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda não apresentou às partes envolvidas a sua posição. “A discussão estava bem adiantada no final do ano passado e, com a mudança [de governo], esse acordo está de certo modo emperrado. A União, em sua nova gestão, não chegou ainda a uma conclusão, e a meu ver não entendeu o que é o acordo. O acordo não é uma decisão judicial favorável”, acrescentou o procurador.
Segundo ele, é preciso se acertar com as empresas. “Se não, elas vão preferir aguardar a decisão do Supremo Tribunal Federal, para depois cumprir”, disse.
Em sua visão, aguardar uma condenação judicial em última instância levaria muitos anos, o que não interessa aos atingidos. “Acho, sinceramente, que o presidente Lula deve tomar a frente disso. Precisamos que esses recursos voltem para o meio ambiente, volte para todos atingidos, e que os estados e a própria União sejam ressarcidos pelas perdas econômicas que tiveram”.
Procurada pela Agência Brasil, a AGU, por meio de nota, contesta a declaração de Jarbas e apresenta um outro panorama. Segundo nota encaminhada pelo órgão, o governo já apresentou claramente a sua posição, e as reuniões para negociar o acordo têm acontecido seguindo cronograma fixado no Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), com sede em Belo Horizonte. As discussões se desenvolvem no âmbito de uma ação civil pública movida pelo MPF, onde os prejuízos causados na tragédia foram estimados em R$ 155 bilhões.
“A União confia no calendário definido sob firme condução do desembargador federal Ricardo Rabelo, para que uma solução consensual seja alcançada respeitando o processo de amadurecimento das partes quanto às propostas discutidas na mesa da repactuação”, diz a nota.
De acordo com a AGU, falta consenso entre as partes quanto às medidas da repactuação e à destinação dos recursos compensatórios. O governo defende que todo o montante definido seja aplicado exclusivamente na Bacia do Rio Doce. Essa é uma perspectiva que se afastaria do acordo firmado em 2021 para a reparação da tragédia em Brumadinho, quando as medidas pactuadas entre o governo mineiro, a Vale e as instituições de Justiça definiram medidas que beneficiaram diferentes cidades do estado, mesmo aquelas mais distantes da área atingida.
“A União entende que os valores devem ser utilizados exclusivamente na recuperação da área e em proveito das pessoas que vivem na região. Portanto, não falta clareza ou proposta da União quanto aos termos da repactuação”, reitera a AGU.
Tratativas
Atualmente, a gestão de todo o processo reparatório é de responsabilidade da Fundação Renova, entidade que deve ser mantida com recursos da Samarco e de suas acionistas Vale e BHP Billiton. Ela foi criada em 2016, atendendo a termo de transação e ajustamento de conduta (TTAC) firmado entre as três mineradoras, o governo federal, os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo e a União. Foram previstos 42 programas que tratam de temas diversas como as indenizações, o reassentamento dos desabrigados, o reflorestamento, a qualidade água, entre outros.
A atuação da Fundação Renova, no entanto, é criticada por comissões de atingidos e por instituições de Justiça que não participaram do acordo. O MPMG chegou a pedir judicialmente a extinção da entidade, alegando que ela não goza da devida autonomia frente às mineradoras. A morosidade de alguns programas também motiva diversos questionamentos aos tribunais. A reconstrução das duas comunidades destruídas em Mariana, por exemplo, até hoje não foi concluída. Ao todo, entre ações civis públicas, ações coletivas e ações individuais, tramitam no Judiciário brasileiro mais de 80 mil processos relacionadas à tragédia.
Foi diante desse quadro, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu no ano passado uma mediação com vistas a obter um novo acordo, capaz de resolver os gargalos da reparação. As tratativas envolveram os governos mineiro e capixaba, o governo federal e as três mineradoras, além dos ministérios públicos e das defensorias públicas de Minas Gerais, do Espírito Santo e da União. O esforço não foi bem-sucedido. Sem consenso, o fracasso da mesa de negociação foi anunciado em agosto em 2022, em meio ao processo eleitoral para escolha de governadores e presidente da República.
Publicamente, o governo mineiro, o MPMG e o MPF atribuíram a culpa às mineradoras, que teriam insistido em prazos de pagamento distantes da expectativa. Na época, as discussões estavam atravessadas pelo clima eleitoral. Os governadores de Minas Gerais, Romeu Zema, e do Espírito Santo, Renato Casagrande, eram os candidatos favoritos à reeleição em seus estados. Ambos tinham adversários que criticavam a assinatura do acordo sem a participação dos atingidos.
Negociação pós-eleitoral
Passadas as eleições, com Zema e Casagrande vitoriosos, as partes voltaram a conversar e manifestaram disposição para uma composição. As negociações passaram assim a ser conduzidas no TRF-6. No podcast do MPMG, Jarbas Soares Júnior relatou que, ainda no final do ano passado, o acordo esteve próximo de ser fechado.
Em dezembro de 2022, o governo mineiro chegou a anunciar que as tratativas caminhavam para o final. No entanto, segundo apurou a Agência Brasil, nessa retomada das conversas, as mineradoras se mostraram resistentes em assinar um acordo com um governo que estava prestes a acabar. Em busca de maior segurança jurídica, consideraram mais prudente aguardar a nova gestão. Havia também o receio de que, com a volta do PT ao governo, as partes envolvidas alterassem suas posições. Por exemplo, o governador Renato Casagrande, reeleito no Espírito Santo, é filiado ao PSB e um aliado antigo do partido do presidente Lula.
Após tomar posse, o novo governo sinalizou que precisaria de tempo para compreender o cenário e definir suas posições. Uma posição interna foi sendo desenhada a partir de discussões que estão sob a condução da Casa Civil da Presidência da República. A AGU participa desse debate. O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima também e, em junho, a pasta publicou uma portaria criando um grupo de trabalho para analisar a questão, composto por representantes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).
Publicamente, as três mineradoras têm se manifestado abertas ao diálogo e afirmam que estão comprometidas com a reparação integral. A Agência Brasil apurou que ainda não há uma definição sobre o manejo dos rejeitos depositados no Rio Doce. As partes discutem se eles deverão ser retirados ou se poderão ser mantidos. No segundo caso, deverão ser estabelecidas medidas de compensação em benefício do meio ambiente.
A forma de tratamento das indenizações individuais também está em discussão. O acordo de reparação da tragédia em Brumadinho, por exemplo, deixou essa questão de fora e cabe a cada um dos atingidos entrar em acordo com a Vale ou cobrar os valores judicialmente. No caso de Mariana, essas indenizações têm sido pagas pela Fundação Renova e os critérios para fixação dos valores são alvos de questionamento nos tribunais.
No final do ano passado, Joceli Andrioli, integrante da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), avaliou em entrevista à Agência Brasil que estava sendo construído mais um acordo de cúpula que não será capaz de resolver os principais problemas. “Infelizmente pouco se aprendeu do ponto de vista institucional em todos esses anos. Nós não nos calaremos até alcançar de fato o Rio Doce vivo, uma justiça concreta e uma reparação concreta aos atingidos”, afirmou.