Por Iago Filgueiras*
Plano diretor é um assunto que se torna pauta de tempos em tempos, principalmente pelo impacto que essa importante ferramenta política pode ter na promoção de uma cidade mais justa e inclusiva. Esse documento, responsável por ordenar o desenvolvimento urbano das cidades é revisto periodicamente e se configura também como um importante palco de disputa entre os agentes urbanos.
O crescimento urbano desordenado, marcado pela expansão das cidades sem um planejamento ou a criação de políticas públicas efetivas, resulta em diversos impactos para os habitantes. A precarização da moradia, a ocupação irregular do solo, o agravamento dos congestionamentos e a falta de acesso a equipamentos públicos básicos podem ser listados como exemplos dos impactos desse crescimento.
Na cidade de São Paulo, o Mapa da Desigualdade de 2023 revelou que na Cidade Tiradentes, bairro do extremo leste da capital paulista com uma população estimada em 240.131 mil habitantes, a taxa de emprego formal para cada dez pessoas em idade economicamente ativa é de 0,3%. Já na zona oeste da cidade, no distrito da Barra Funda, cuja população é de 16.574 habitantes, a taxa é de 70,06%.
A forma como os equipamentos públicos serão dispostos, o incentivo ao crescimento de uma zona, a quantidade de moradias que podem ser construídas, a forma de ocupação do solo e o acesso a transporte público coletivo podem ser regidos pelo plano diretor. Na Cidade Tiradentes, por exemplo, as pessoas podem levar até 3 horas para chegar ao trabalho.
Por isso, é importante entender o papel desse documento na promoção de uma cidade mais acolhedora e como as questões urbanísticas produzem resultados perceptíveis em nossa realidade. Além disso, nesse artigo traremos exemplos de propostas urbanísticas que buscam repensar o modo como vemos as cidades.
O que é plano diretor?
Plano diretor é um dispositivo legal previsto no artigo 182 da Constituição Federal de 1988, que versa sobre o desenvolvimento urbano e tem como função “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. Mas nem todas as cidades têm a obrigação de ter um plano diretor.
Esse documento é obrigatório para municípios com mais de 20 mil habitantes, que façam parte de uma região metropolitana, sejam de especial interesse turístico ou possuam em seu território grandes obras e empreendimentos com impacto considerável nas esferas urbanas e ambientais.
Segundo o Censo de 2022 realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), dos 5.570 municípios brasileiros, 1.710 possuem população igual ou superior a 20.000 habitantes. Isto é, pelo menos 30% das cidades brasileiras precisam de um plano diretor para nortear o seu desenvolvimento e expansão, a maioria localizada nas regiões nordeste e sudeste.
Embora sejam previstos na Constituição, os instrumentos e estratégias de desenvolvimento urbano foram regulamentados pela Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, também conhecida como Estatuto da Cidade. Entre outros atributos, o Plano Diretor tem como objetivos principais garantir a regularização fundiária, estabelecer regramentos para o uso e ocupação do solo e versar sobre a função social do imóvel.
Estatuto da Cidade
O Estatuto da Cidade tem como princípios básicos a regularização da propriedade urbana, considerando o bem-estar coletivo, o meio ambiente e a segurança. Dessa forma, além de regulamentar os artigos da Constituição que versam sobre política urbana, distribui essa função também para os municípios. Por isso, os planos diretores municipais devem ter o Estatuto como matriz.
Outro aspecto importante contido nessa legislação, são os instrumentos jurídicos que versam sobre a ocupação do solo, tombamento de edifícios e a cobrança de IPTU progressivo no caso de não cumprimento da função social da propriedade. Essas normativas que dizem respeito ao controle e uso do solo atuam para evitar a especulação imobiliária e o uso inadequado do território urbano.
As possibilidades tributárias previstas no estatuto, também permitem a oneração de determinados usos e ocupações do solo. Dessa forma, esses instrumentos possibilitam um impacto no cenário econômico e orçamentário do município, viabilizando gastos públicos em regiões com maiores necessidades de atuação do estado em determinados aspectos.
O documento também estabelece que a administração pública deve agir em prol do bem coletivo, atuando na universalização e aprimoramento dos serviços disponibilizados pelo estado nos diversos distritos da cidade.
Abaixo, listamos os principais dispositivos presentes no estatuto:
- Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios (PEUC): é um instrumento que obriga a utilização de imóveis urbanos vazios, não utilizados ou sub utilizados, estabelecendo um prazo para o usuário parcelar, edifique ou utilize o imóvel. Dessa forma, buscando combater o acúmulo de imóveis para a especulação imobiliária.
- Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) progressivo: estabelece o aumento gradual do imposto para os imóveis que não cumprem função social e descumpriram o prazo fixado para o parcelamento, edificação ou utilização compulsória.
- Direito de preempção: garante prioridade ao município na aquisição de imóveis em regiões tidas como prioritárias, conforme o Plano Diretor. Para a compra, o estado deve respeitar o valor do imóvel. Esse dispositivo permite evitar práticas como a desapropriação para adquirir terrenos para promoção de políticas de moradia, preservação ambiental e de patrimônio histórico-cultural, por exemplo.
- Estudo de impacto de vizinhança: esse estudo visa analisar impactos como o adensamento populacional, alteração no trânsito, valorização imobiliária e alteração na demanda de transporte público, decorrentes da construção ou funcionamento de empreendimentos em terrenos urbanos.
- Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC): assegura ao município o direito de uma área limite para edificação, considerando a área total do terreno e a área edificável. Ultrapassando esse limite, é necessária alguma contrapartida financeira para a viabilização da construção.
O Estatuto da Cidade também estabelece formas para que os habitantes possam exercer influência nos processos decisórios das cidades em que moram assegurando que a revisão e elaboração do Plano Diretor, por exemplo, levem em conta a participação popular, as demandas locais e a valorização da diversidade.
Como é feito o Plano Diretor?
O plano diretor é elaborado pelo poder executivo (prefeitura) e aprovado pelo legislativo (câmara dos vereadores) em forma de uma lei municipal. As etapas para elaboração do documento precisam considerar a participação democrática, a leitura do território e devem ser acompanhadas de um corpo técnico capacitado.
O governo federal dispõe de um guia elaborado em 2022, que estabelece alguns passos para auxiliar gestores e técnicos municipais, junto aos outros atores sociais envolvidos, no processo de elaboração e revisão dos planos. Embora estabeleça a possibilidade de contratação de uma consultoria especializada para auxiliar o município, o guia reforça a necessidade de atenção ao território no qual ele está inserido.
Um aspecto recomendado para a elaboração do plano, é a criação de um núcleo gestor, com representantes técnicos de diversas áreas da administração municipal, como transporte, moradia, saúde, educação e meio ambiente. Além disso, é interessante também que a sociedade civil se veja representada neste conselho, garantindo maior transparência no processo.
Tendo em vista a necessidade da participação democrática nos processos de elaboração e revisão, a administração municipal deve articular a população via conselhos municipais, reuniões e debates públicos. Com o objetivo de valorizar a diversidade, as discussões devem considerar os segmentos sociais, divididos por temas e bairros, por exemplo.
O equilíbrio entre os campos técnicos e políticos é essencial para garantir a viabilidade de um plano diretor. Somente após os processos de discussão técnica, social e política é que um projeto de lei pode ser elaborado e eventualmente aprovado.
Palco de disputas
Os diversos agentes urbanos também entram em conflito no processo de elaboração de um plano diretor. Em diversas cidades, a criação deste tipo de documento é profundamente marcada por embates entre setores representantes do mercado imobiliário, cidadãos, organizações do terceiro setor e lojistas, por exemplo.
No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes chegou a vetar alguns artigos contidos na lei complementar 270/24. Entre os pontos rejeitados estão o que garantia prioridade à famílias chefiadas por mulheres, indígenas, populações negras, LGBTQIAPN+ e minorias sociais no tema da locação social.
Já no Rio Grande do Sul, a eleição realizada no início do ano para o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) da cidade de Porto Alegre exacerbou as divergências políticas sobre o futuro da cidade. O colegiado é um instrumento participativo que detém certa influência no processo de revisão do plano diretor da cidade.
Em São Paulo, durante a revisão do plano diretor do município, moradores e comerciantes de bairros de luxo entraram em atrito. De um lado, os residentes queriam manter a ‘tranquilidade’ nas vizinhanças, de outro, comerciantes e empresários desejavam que o zoneamento urbano permitisse a instalação de determinados tipos de empreendimentos nessas regiões.
Impacto do urbanismo na relação com a cidade
O urbanismo é essencial para se pensar como as pessoas se relacionam com a cidade. A disposição de equipamentos públicos, espaços de lazer, acesso à saúde, trabalho, cultura, práticas religiosas e educação são elementos estruturantes de uma cidade. Por isso, para o arquiteto e urbanista Flávio Kiefer, “o Urbanismo é a ciência que estuda os fundamentos que estão por trás das formas que as pessoas encontraram para compartilharem suas vidas em conjunto”.
Nesse sentido, todos esses aspectos influenciam diretamente na qualidade de vida dos cidadãos e no funcionamento saudável ou não de uma cidade. Por exemplo, a proximidade ou não a serviços públicos de atendimento de urgência, pode influenciar diretamente no tratamento e sobrevivência de um cidadão, em caso de um acidente.
O planejamento urbano, de modo geral, permite promover diversas melhorias na vida das populações urbanas. Por isso, ao longo da história diversos urbanistas discutiram e elaboraram métodos para tornar as cidades mais amigáveis e acolhedoras.
Cidades de 15 minutos
O arquiteto e urbanista Carlos Moreno é reconhecido por promover um conceito de cidade onde os habitantes estejam próximos aos recursos necessários para poderem viver dignamente. As cidades de 15 minutos são um modelo de planejamento urbano onde moradia, trabalho, educação, saúde e lazer, devem estar a não mais que 15 minutos de distância das pessoas.
Além de promover a vida em comunidade, através da redução de distâncias, esse tipo de planejamento possibilita a redução da necessidade do carro para deslocamento. Dessa forma, por serem pensadas em uma escala humana, as cidades de 15 minutos permitem a promoção de uma convivência mais sustentável e acolhedora.
Em entrevista ao portal Somos Cidades, Moreno afirmou “precisamos tornar a vida urbana mais agradável, ágil, saudável e flexível. Para isso, temos que garantir que todos, habitem nas regiões centrais ou periféricas, tenham acesso aos principais serviços perto de suas casas”. O conceito é inspirado no pensamento da ativista e escritora estadunidense Jane Jacobs, que diz que espaços vivos precisam aproximar diferentes funções e convidar as pessoas a se apropriarem das ruas.
Os “olhos da rua”
É bem possível que você já tenha alterado uma rota a ser percorrida, com base na quantidade de pessoas ou comércios que você encontrará no caminho. Pode até parecer uma escolha espontânea, mas nem sempre é. Segundo uma pesquisa do Datafolha divulgada em agosto deste ano, 54% dos paulistanos se sentem muito inseguros ao caminhar na rua depois do anoitecer. Em Recife, o número chega a 56%.
Para muitas pessoas, o caminho de casa ao ponto de ônibus e ao trabalho, pode ser muito estressante devido à sensação de insegurança e o medo de assaltos, assédios ou outros delitos. Mas pense bem, você se sentiria mais seguro se nos trajetos que faz diariamente, encontrasse mais pessoas pelo caminho? Não apenas pedestres, mas um comércio com a fachada envidraçada e que permita que as pessoas que estão dentro possam ver a rua, um mercado aberto ou até mesmo pessoas sentadas em mesas de um restaurante?
A sensação de maior vigilância ao perceber que todos podem ver o que acontece, mesmo que inconscientemente, foi chamada pela escritora estadunidense Jane Jacobs, de “olhos da rua”. Para ela, as ruas se tornam mais seguras se todos puderem ver o que acontece.
No debate sobre segurança pública, uma solução frequentemente apontada para aumentar a segurança nas vias públicas é a redução da discussão ao simples investimento em iluminação. Em seu livro ‘Morte e Vida em Grandes Cidades’ publicado em 1961, Jacobs faz uma provocação: “Sem olhos atentos para enxergar, a luz ilumina? Para fins práticos, não”.
Mas é claro que é impossível exigir que as pessoas fiquem observando as calçadas e vias públicas o tempo todo. Para isso, é indispensável criar formas de atrair a atenção dos pedestres, moradores e comerciantes. Nesse sentido, uma estratégia eficiente é a promoção de uma maior oferta de estabelecimentos e equipamentos públicos ao longo das vias, algo que pode ser estimulado pelas fachadas ativas.
Fachadas ativas
Ao caminhar pelas ruas de um ambiente urbano, é bem possível que você já tenha se deparado com prédios onde o andar térreo é composto por várias lojas, boxes ou outros espaços comerciais. Em resumo, esses espaços conseguem proporcionar uma maior interação entre aqueles que passam pelas ruas e calçadas e os lotes construídos.
A explosão de novos empreendimentos imobiliários é algo que tem ganhado destaque nos grandes centros urbanos. Na cidade de São Paulo, um estudo do Instituto Data Lello, administrado por uma grande empresa do setor imobiliário, revelou que a cidade pode atingir um recorde de verticalização no ano de 2024. São estimados 818 novos empreendimentos imobiliários nesse ano, 98% deles de uso residencial.
No caso de São Paulo, o Plano Diretor Estratégico, aprovado em 2014, estabelece a obrigatoriedade das fachadas ativas em empreendimentos localizados nas Zonas Eixo de Estruturação da Transformação Urbana (ZEUs) e que desejam utilizar utilizar o incentivo de uso Não Residencial (NR), que equivale a 20% da área computável. Dessa forma, a contrapartida para a construção dessas fachadas é a possibilidade de a incorporadora poder construir mais do que sua área máxima computável.
As ZEUs correspondem a cerca de 18% da área total da cidade e são partes do território em que se pretende promover o uso residencial e comercial, com alta densidade demográfica e construtivas. Com isso, o objetivo é qualificar o espaço urbano, proporcionando uma maior articulação entre essas zonas, os espaços públicos e o sistema de transporte público coletivo.
No entanto, embora esse incentivo exista, muitos dos espaços comerciais construídos no nível da calçada demoram para ser alugados. Entre os motivos apontados para essa baixa taxa de ocupação, está o fato de essas lojas não contarem com infraestrutura suficiente para comportar vários tipos de empreendimentos.
Em 2015, um ano após a aprovação do plano diretor, um estudo produzido pela Secovi-SP em conjunto com a Associação Comercial de São Paulo destacava a possibilidade de vacância das fachadas ativas. O motivo apontado pelo levantamento seria que, nos moldes do plano diretor, haveriam mais áreas construídas para esse fim do que a real necessidade do mercado.
A falta de dados consolidados sobre o tema, impedem uma análise mais aprofundada desse fenômeno. Mas de modo geral, é possível avaliar que a presença das fachadas ativas em novos empreendimentos imobiliários na cidade de São Paulo, independente da ocupação ou não, cresceu perceptivelmente nos últimos anos.
Plano diretor e participação social
Como visto anteriormente, o processo de elaboração e revisão do Plano Diretor prevê a participação popular na tomada de decisões, por isso, esse é um espaço que deve ser reivindicado e ocupado pelos cidadãos. No entanto, embora exista, essa necessidade de participação não é devidamente regulamentada.
Para permitir a gestão participativa, é importante que o plano preveja a atuação de conselhos e fundos municipais, gestão orçamentária participativa, audiências públicas, conferências municipais, referendos e plebiscitos.
Segundo a cartilha “Plano Diretor, participar é um direito” elaborada pelo Instituto Pólis a participação na elaboração ou revisão do documento é importante, pois “as discussões sobre o que queremos para a cidade, muitas vezes, mostram os diferentes pontos de vista, os conflitos. Por isso, você deve participar para garantir que seus interesses sejam debatidos, negociados e pactuados.”
É possível que muitos municípios não disponham de formas ou do interesse para garantir a participação democrática no Plano, por isso, os cidadãos podem demandar esse direito pressionando o poder público nas esferas já existentes, como os conselhos municipais. Além disso, é importante acompanhar e pressionar os representantes do executivo e legislativo municipal para que esses direitos se façam valer.