Marcelo Henrique de Carvalho
Em um cenário urbano cada vez mais fragmentado, as interações cotidianas entre indivíduos de diferentes classes sociais revelam-se como um microcosmo das tensões e contradições que permeiam a sociedade contemporânea. A cidade, palco de encontros fugazes e relações efêmeras, torna-se um laboratório de observação das dinâmicas de poder, privilégio e exclusão que moldam as experiências humanas. Nas ruas, nos transportes públicos, nos espaços de consumo e, até mesmo, nos ambientes digitais, as fronteiras invisíveis entre as classes sociais são constantemente reforçadas, desafiadas e, por vezes, transpostas.
A geografia urbana é um reflexo das hierarquias sociais. Bairros nobres, com suas ruas arborizadas e infraestrutura impecável, contrastam brutalmente com periferias marcadas pelo abandono. No entanto, é nos espaços intermediários — shoppings centers, estações de metrô, parques públicos — que as classes sociais se encontram, ainda que de forma superficial e, muitas vezes, desconfortável. Esses locais, aparentemente democráticos, são na verdade arenas onde as diferenças são performadas e negociadas, sempre de maneira bastante sutil e velada, sob intensa proteção do arcabouço do “politicamente correto”.
Analisando-se uma cena cotidiana, em ambiente público. Enquanto uma elegante senhora perambula altiva pela calçada, o vendedor ambulante recolhe-se, sentado, à pequenez que seus olhos o enxergam. O olhar que se desvia, o corpo que se encolhe para ocupar menos espaço, o celular que vira escudo contra a interação — todos esses gestos são sintomáticos de uma sociedade que aprendeu a conviver com a desigualdade, mas não a enfrentá-la.
Os espaços de consumo são outro palco onde as interações entre classes sociais ganham contornos dramáticos. Em um shopping center, a presença de seguranças e a sutil vigilância sobre certos grupos revelam como o acesso ao consumo é regulado por critérios de classe. Enquanto jovens de classe média alta circulam livremente, com sacolas de marcas caras nas mãos, moradores de periferias muitas vezes são seguidos por olhares desconfiados, como se sua presença ali fosse uma transgressão. O que chama ainda mais a atenção é que os próprios indivíduos que atuam na segurança (pública e privada), em geral pertencem às classes que experimentam essas restrições invisíveis, sempre segregadas pela chamada “catraca social”.
Ainda dentro dos ambientes de compras, esse fenômeno é claramente notado quando, por algum “descuido”, entra alguma dessas pessoas de classes menos favorecidas. Rapidamente, os olhares temerários dos transeuntes denunciam não apenas o receio de eventual ato violento, mas também o desconforto em ver, dentro de seu nicho, imagens que destoam de sua classe. Esse cenário é frequentemente observado quando crianças (que transpõem as catracas sociais pela inocência) são encaradas com repulsa pelos frequentadores desses ambientes, deflagrando a verdadeira essência de grande parte das pessoas, muitas vezes escondidas na couraça do politicamente correto.
Nessa esteira, é importante notar que o consumo não é apenas um ato econômico, mas também um ritual de afirmação identitária. Para muitos indivíduos de classes populares, adquirir produtos associados ao estilo de vida das elites é uma forma de ascensão simbólica, uma tentativa de apagar, ainda que temporariamente, as marcas da exclusão. Por outro lado, membros das classes altas podem adotar elementos da culturais de acesso restrito como forma de se diferenciar dentro de seu próprio grupo, em um jogo de distinção que reforça sua posição privilegiada. Sem olvidar dos tempos de campanhas políticas, nos quais a busca pelo voto encoraja diversos políticos a estarem nos ambientes das massas, sempre ladeados de seguranças e todo o staff necessário, é claro.
No mundo digital, uma análise mais afoita pode tendenciar à diluição das fronteiras sociais, notadamente pela democratização do acesso franqueada pelo uso de um aparelho celular com acesso à Internet. As redes sociais, por exemplo, embora acessíveis a uma parcela significativa da população, são espaços onde as desigualdades aparentam menores proporções, justamente pela facilidade de manipulação da verdade e do constante acesso a cenas e elementos de ilusão. Inclusive, é exatamente esse distanciamento da vida virtual para a vida real que tem levado diversos influenciadores à depressão e, até mesmo, a situações bem piores.
Além disso, a interação online entre pessoas de diferentes classes, muitas vezes é marcada por mal-entendidos e conflitos. A falta de empatia e o desconhecimento das condições de vida do outro geram discursos de ódio e polarização, evidenciando que a tecnologia, sozinha, não é capaz de superar as barreiras de classe, ao contrário. O chamados algoritmos das redes sociais, por exemplo, são verdadeiros agregadores de pessoas com mesmos pensamentos, o que gera a falsa impressão de unanimidade naquela linha de compreensão.
As interações cotidianas entre pessoas de diferentes classes sociais são, portanto, um espelho das contradições de uma sociedade que se diz democrática, mas que ainda está longe de garantir igualdade de oportunidades e respeito mútuo. Enquanto as fronteiras invisíveis continuarem a ser erguidas — seja pela geografia urbana, pelo consumo ou pela tecnologia —, a possibilidade de um diálogo autêntico e transformador permanecerá distante.
A superação dessas barreiras exige mais do que iniciativas isoladas. A efetiva alteração desse quadro começa pela Educação e demanda uma mudança cultural profunda, que reconheça a humanidade do outro independentemente de sua posição social. Trata-se do importante exercício de enxergar o valor do outro, mesmo dentro do contexto da diferença. Enquanto isso não acontecer, as interações cotidianas seguirão sendo marcadas pelo silêncio, pelo desconforto e pela “invisibilidade” das diferenças que induzem as sutis, porém gritantes separações.