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A politização generalizada como fator desagregador

Marcelo Henrique de Carvalho


Marcelo Henrique de Carvalho

A sociedade contemporânea, em especial a brasileira, tem sido palco de um fenômeno que, embora não seja inédito, ganhou contornos alarmantes nas últimas décadas: a politização generalizada de todas as esferas da vida pública e privada. Esse processo, que inicialmente poderia ser interpretado como um sinal de engajamento democrático, revela-se, sob uma análise mais detida, um fator desagregador de profunda gravidade. Ao transpor questões políticas para domínios que deveriam permanecer alheios a influências ideológicas, a sociedade brasileira vê-se imersa em um cenário de polarização e desunião, comprometendo o juízo de valor necessário para decisões técnicas e estratégicas.

A politização generalizada manifesta-se de maneira mais evidente em setores tradicionalmente considerados neutros, como a ciência, a educação, a saúde e até mesmo a administração pública. No Brasil, por exemplo, a escolha de políticas públicas tem sido frequentemente subordinada a agendas ideológicas, em detrimento de evidências científicas e análises técnicas. A pandemia de COVID-19 ilustrou de forma cristalina essa tendência: a discussão sobre medidas sanitárias, como o uso de máscaras e a eficácia de vacinas, foi contaminada por disputas partidárias, gerando desconfiança e hesitação na população. O resultado foi um aumento desnecessário de mortes e um aprofundamento das divisões sociais.

Esse fenômeno não se restringe, contudo, ao campo da saúde. Na educação, a politização de currículos e metodologias tem gerado embates que pouco contribuem para a formação crítica e cidadã dos estudantes. A chamada “guerra cultural” entre progressistas e conservadores transformou a escola em um campo de batalha ideológico, onde o debate pedagógico é frequentemente substituído por slogans e dogmas. O mesmo ocorre no âmbito da administração pública, onde a nomeação de cargos técnicos é muitas vezes pautada por lealdades políticas, em vez de competência e mérito. Essa prática, além de comprometer a eficiência do Estado, alimenta a descrença nas instituições.

A análise sociológica desse cenário aponta para uma crise de legitimidade das instituições e uma erosão do espaço público como arena de diálogo racional. O filósofo Jürgen Habermas, em sua Teoria da Ação Comunicativa, destacou a importância de um espaço público onde os cidadãos possam debater de forma livre e racional, visando ao entendimento mútuo. No Brasil contemporâneo, contudo, o espaço público foi colonizado por lógicas identitárias e partidárias, que transformam o debate em uma disputa de narrativas, onde prevalece a força retórica e não a qualidade dos argumentos.

A politização generalizada também tem impactos profundos na coesão social. Ao transformar todas as questões em disputas políticas, a sociedade brasileira fragmenta-se em tribos ideológicas, cada vez mais fechadas em suas próprias bolhas. Esse processo de tribalização impede o reconhecimento de interesses comuns e a construção de consensos mínimos, essenciais para a estabilidade democrática. A desunião resultante compromete não apenas a capacidade de tomar decisões coletivas, mas também a própria noção de bem comum.

Além disso, é importante ressaltar que as programações por trás das redes sociais enfatizam, ainda mais, as bolhas sociais mencionadas acima. Nesse círculo vicioso, as pessoas a acabam sendo virtualmente direcionadas para argumentos sempre comuns aos seus pares, empobrecendo as narrativas e esvaziando os argumentos.

Em suma, a politização generalizada, longe de ser um sinal de vitalidade democrática, revela-se um fator desagregador de graves consequências. Ao invadir domínios que deveriam ser regidos por critérios técnicos e objetivos, ela compromete a eficácia das políticas públicas e a coesão social. Para reverter esse quadro, é urgente reconstruir um espaço público baseado no diálogo racional e no respeito às instituições, resgatando a noção de que há esferas da vida que devem permanecer imunes à influência ideológica. Só assim será possível restabelecer a confiança e a união necessárias para enfrentar os desafios do século XXI.

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