Por: Estadão
Desde o início do ano, a ciência tem buscado estabelecer características e padrões da covid-19, uma doença nova, entre os diversos sociais e de idade da população. Até agora, crianças e adolescentes são minoria entre as vítimas da pandemia pelo mundo. Mas, nos estudos sobre o novo coronavírus, o risco de os mais novos apresentarem sintomas graves e seu papel na transmissão ainda levantam muitas dúvidas – ainda sem respostas definitivas.
Essas incertezas científicas aumentam a complexidade sobre o debate da volta às aulas, que tem se intensificado no Brasil e no mundo nas últimas semanas. Parte dos especialistas brasileiros defende a reabertura das escolas, como forma de impedir prejuízos maiores à aprendizagem, aumento da evasão e perda de vínculo com a escola, mas outra corrente de educadores faz ressalvas sobre a segurança desse retorno.
No último dia 14, a OMS, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco) publicaram um guia recomendando que os governos priorizem a continuidade da educação e alertando que o fechamento de escolas só deve ser considerado quando não houver outras alternativas. Na cidade de São Paulo, o prefeito Bruno Covas (PSDB) anunciou esta semana a retomada de atividades presenciais nos colégios a partir de outubro.
Veja o que a ciência já mostrou sobre a transmissão do vírus e a síndrome rara provocada nestes grupos.
Transmissão
No acalorado debate sobre a reabertura das escolas, uma questão polêmica é se, e como, as crianças transmitem o coronavírus para outras pessoas. Em julho, um amplo estudo realizado na Coreia do Sul ofereceu uma resposta: crianças menores de 10 anos de idade propagam o vírus com muito menos frequência do que os adultos, mas o risco não é zero. Porém, em idade entre 10 e 19 anos, elas podem contagiar uma pessoa do mesmo modo que os adultos.
De acordo com a pesquisa, crianças menores de 10 anos têm 50% de probabilidade em relação aos adultos de propagar o vírus para outras pessoas, o que está de acordo com outros estudos. Talvez porque as crianças geralmente exalem menos ar – com isso elas ficam menos carregadas de vírus – ou porque exalam o ar mais perto do chão o que torna menos provável que os adultos o inspirem.
Na mesma linha, em 24 de agosto, a líder técnica da resposta à pandemia da Organização Mundial da Saúde (OMS), Maria Van Kerkhove, afirmou que estudos preliminares mostram que crianças pequenas transmitem menos covid-19 em relação aos adolescentes.
Maria acrescentou que, embora haja registros de mortes e infecções grave entre crianças, a maioria deste grupo que é infectada com o novo coronavírus apresenta a forma leve ou assintomática da doença. Essa particularidade dificulta as pesquisas, de acordo a líder técnica.
Estudos soroepidemiológicos – que testam a presença de anticorpos para checar se o paciente teve infecção de covid-19 – resultados iniciais apontam essa diferenças nas taxas de infecção entre crianças pequenas e adolescentes. Outras pesquisas, de transmissão doméstica, indicam que a infecção passar de uma criança a um adulto é menos comum que o contrário.
No entanto, um outro estudo, divulgado em agosto pela Escola Médica da Universidade de Harvard, apontou que crianças possuem alta carga viral do novo coronavírus e podem ser mais contagiosas do que adultos, inclusive aqueles internados em unidades de terapia intensiva (UTI). De acordo com a pesquisa, o potencial de disseminação do vírus entre os mais jovens tem sido subestimado desde o início da pandemia.
Os autores sugerem que outros cientistas se equivocaram ao analisar a evolução epidemiológica sob a perspectiva sintomática da doença. Acreditava-se que o número reduzido de receptores do coronavírus — a chamada proteína ACE2, pela qual a proteína spike do SARS-CoV-2 entra nas células humanas — nas crianças levaria a uma menor carga viral, mas o estudo de Harvard derruba essa ligação e alerta que elas podem ser mais contagiosas independentemente da suscetibilidade à covid-19.
O estudo foi recebido com cautela pelos cientistas brasileiros. Uma das razões é a restrição da amostra (192 pessoas com idades entre 0 a 22 anos), o que não permitiria conclusões mais consistentes. Por outro lado, a pesquisa preocupa educadores, pois reafirma os riscos de contágio no momento do retorno das aulas presenciais. Mais importante do que analisar a carga viral de cada criança é acompanhar a experiência dos países que já reabriram as escolas – essa é opinião de médicos que analisaram a reabertura em outros países.
Sobre as assintomáticas, um estudo publicado no fim de agosto sugeriu que crianças infectadas podem transmitir o novo coronavírus mesmo que nunca tenham apresentado sintomas ou algum tempo depois de eles terem desaparecido. A investigação, que avaliou 91 crianças em hospitais da Coreia do Sul, mostrou também que a duração dos sintomas, quando ocorrem, “variou amplamente”, desde três dias até quase três semanas.
Além disso, houve uma diferença considerável nos resultados quanto ao tempo que as crianças continuam transmitindo o vírus e “poderiam ser potencialmente infecciosas”, indica um comunicado do Children’s National Hospital, de Washington, a quem a revista Jama Pediatrics pediu um comentário sobre o estudo. Dessa forma, enquanto o vírus foi detectado em uma média de cerca de duas semanas e meia em todo o grupo, cerca de um quinto dos assintomáticos e metade dos sintomáticos seguiam transmitindo o vírus até perto de três semanas.
Síndrome rara e comorbidades
Neste mês, pesquisadores do Hospital Infantil Bambino Gèsu, do Vaticano, em parceria com o Instituto Karolinska, da Suécia, conseguiram descobrir como funciona o mecanismo que desencadeia uma reação inflamatória grave em crianças infectadas pelo novo coronavírus, chamada de síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) e que causa inflamação dos vasos sanguíneos e problemas cardíacos e intestinais. Os resultados foram publicados na revista científica Cell.
Inicialmente, a síndrome foi confundida com a doença de Kawasaki, uma inflamação sistêmica que causa febre, dor de garganta, conjuntivite, manchas no corpo, vermelhidão na sola dos pés e na palma das mãos. A principal complicação é a ocorrência de aneurismas na artéria coronária, que, se não for tratada adequadamente, pode levar à morte.
Embora os dois quadros alterem os níveis de citocinas, células de defesa, o mecanismo ocorre de forma diferente na síndrome. Os pesquisadores observaram, por exemplo, que a interleucina 17a, que aparece muito aumentada nas crianças com Kawasaki, não aumentou em pacientes com a covid-19, mas estes desenvolveram uma elevada presença de anticorpos.
Eles observaram ainda que crianças com coronavírus apresentam “um tipo particular de linfócitos T (subtipo de glóbulos brancos responsáveis pela defesa do corpo) com função imunológica alterada em comparação com crianças com doença de Kawasaki”. Essa alteração é a base da inflamação e a produção de anticorpos contra o coração.
Diante desse achado, os pesquisadores acreditam que, monitorando os linfócitos T e o espectro de anticorpos, é possível fazer a detecção precoce da resposta inflamatória grave em crianças infectadas pelo vírus. Também a partir dos resultados, foi proposta a indicação de um tratamento com imunoglobulinas em altas doses para limitar o efeito dos anticorpos, utilizando anakinra e cortisona em fases iniciais para inibir a inflamação secundária. Tocilizumabe e bloqueadores de TNF-a são contraindicados.
As manifestações raras da doença em crianças não foram observadas na China, onde a pandemia surgiu, no fim do ano passado. Os primeiros relatos de um conjunto de sintomas pouco comum foram vistos na Europa, no final de abril, quando os serviços de saúde do Reino Unido e da França reportaram alguns casos. No começo de maio, teve-se notícia de 15 crianças hospitalizadas em Nova York, nos Estados Unidos.
Em agosto, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) divulgou uma nota de alerta para reforçar a necessidade de notificação obrigatória da síndrome em todo o País. “As crianças e adolescentes que manifestam a SIM-P são habitualmente saudáveis, mas podem apresentar alguma doença crônica preexistente, particularmente doenças imunossupressoras”, informaram os especialistas que elaboraram o documento.
No último dia 16, um estudo com pacientes de 1 mês de vida a 19 anos que ficaram internados por causa do novo coronavírus em UTIs apontou que ter alguma comorbidade aumenta em 5,5 vezes as chances de crianças e adolescentes evoluírem para casos graves de covid-19 em relação a pacientes saudáveis.
O estudo, realizado pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) em parceria com 19 hospitais públicos e particulares do País, mostrou ainda que sintomas gastrointestinais foram detectados nos pacientes que desenvolveram a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica. Na pesquisa, publicada no Jornal de Pediatria, foram acompanhados 79 pacientes internados em hospitais do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Ceará e Pará no período de 1º de março a 31 de maio.