Quando Beth Gomes aparece entre as competidoras do lançamento do disco, é quase certo que um novo recorde mundial paralímpico está a caminho. Foi assim nos Jogos Parapan-Americanos de Lima (Peru), no Mundial de Dubai (Emirados Árabes Unidos), ambos em 2019, e na seletiva da seleção brasileira de atletismo da Paralimpíada de Tóquio (Japão), em junho. Nesta última, em São Paulo, a lançadora de 56 anos, que já estava com a vaga nos Jogos garantida, bateu o próprio recorde duas vezes, cravando 17,41 metros. A marca supera a de Dubai em mais de meio metro (52 centímetros).
PATROCINADO
Natural de Santos (SP), Beth compete na classe F52, uma das oito voltadas a cadeirantes nas provas de campo (lançamentos de disco e dardo e arremesso do peso). A categoria reúne atletas sem controle de tronco e com deficiência nos membros superiores. A principal adversária na disputa pelo topo do pódio é a ucraniana Iena Lebiedieva, da classe F53, uma acima da paulista (portanto, com menor comprometimento motor que ela).
“Cada competição é uma surpresa para nós. Eu entro na prova para fazer o meu melhor e os recordes têm vindo. É fruto do trabalho, da evolução. Minha treinadora, a Roseane Farias, é uma pessoa que é tudo na minha vida e contribuiu muito para eu chegar a esse ápice na carreira. Sei que a esclerose múltipla, minha patologia, causa muito impacto e fadiga, então, a cada treino, venho me superando. Elas, lá fora, também estão treinando para fazer um bom papel. Cada quebra de recorde passa a sensação de ter uma grande chance, mas tenho que ter as rodas da cadeira no chão”, projetou Beth à Agência Brasil.
Apesar de os Jogos de Tóquio serem os primeiros em que disputará medalhas no atletismo, Beth teve o gostinho de competir no maior evento paralímpico do planeta. Em 2008, a paulista integrou a seleção de basquete em cadeira de rodas na Paralimpíada de Pequim (China). A modalidade foi a que introduziu a hoje lançadora no movimento paradesportivo em 1996, três anos após ser diagnosticada com a esclerose múltipla.
“Naquela época, era o basquete que inseria as pessoas com deficiência no esporte. Foi uma experiência inacreditável ser convocada à Paralimpíada. Na abertura, quando adentrei o Ninho de Pássaro [estádio que recebeu a cerimônia], eu me beliscava para ver se era um sonho. Agora, os Jogos são em outra modalidade. É muita adrenalina, um friozinho na barriga. Quero que meu disco vá o mais longe possível”, emocionou-se.
Simultaneamente ao basquete, porém, Beth já vivenciava o atletismo. Foi corredora em cadeira de rodas e representou a cidade de Santos (onde é guarda-civil municipal reformada) nos Jogos Regionais e Abertos do Interior, este último o principal torneio poliesportivo amador do país. As provas de arremesso e lançamento entraram de vez na rotina em 2006.
“Meu treinador sugeriu que fizéssemos as provas de campo, que poderíamos trazer mais pontos para a cidade nos Jogos. Aceitei o desafio. Comecei a treinar junto com o basquete e consegui trazer resultados. As provas de campo se tornaram uma outra paixão”, contou a santista, que deixou o basquete em 2010 para se dedicar integralmente ao atletismo a partir do ano seguinte, tendo como inspiração a campeã paralímpica Rosinha Santos, ouro no arremesso de peso e no lançamento de disco na Paralimpíada de 2000, em Sydney (Austrália).
Resiliência
A princípio, a estreia paralímpica de Beth no atletismo seria nos Jogos do Rio de Janeiro, em 2016, no arremesso do peso. Meses antes, porém, a santista teve de passar outra vez por uma classificação funcional (processo que categoriza o atleta conforme o grau da deficiência) devido à esclerose ser uma patologia degenerativa. Na ocasião, ela integrava a classe F54, mas foi realocada na classe F55, ao lado de lançadoras com menor comprometimento.
“Eu era cotada para medalha [na F54], mas a classificadora me jogou na F55, onde as atletas têm todo o movimento dos membros superiores e de tronco. No caso, eu já tinha uma das minhas mãos em garra, sem controle de tronco. O CPB [Comitê Paralímpico Brasileiro] contestou, mas não só não atenderam como colocaram para minha classificação não ser alterada por dois anos. Se tivesse a prova do peso na F55, ainda era cotada a medalha. Mas só tinha o disco, onde o índice era muito alto. Fiquei fora. Foi uma frustração grande, não acreditava no que estava acontecendo. Mas Deus sabe de todas as coisas e hoje estou com a vaga”, relembrou a paulista, que foi inserida na classe F52 após sofrer um surto da esclerose em 2017, que afetou ainda mais as duas mãos, ambas em garra.
Não foi a primeira vez que Beth teve de mostrar resiliência para encarar adversidades. A própria descoberta da patologia, aos 28 anos, atingiu uma das grandes paixões, o voleibol, que começou a praticar aos 14 anos, ainda na escola.
“Naquela época, diziam que a pessoa com esclerose não podia fazer esforço, academia, nada. Fui até estudo de laboratório, porque, mesmo com a esclerose, fazia meus treinamentos pesados e competia, sempre respeitando muito meu corpo. Com isso, caiu esse protocolo de que portador de esclerose não podia fazer exercício. Foi uma grande conquista. O esporte colabora e ajuda muito pessoas com esclerose múltipla, tirando do sedentarismo. Lógico, acompanhado de um educador físico”, disse a atleta, que defende a equipe Fast Wheels, de Santos.
Beth convive há 28 anos com a patologia e se orgulha de dizer que não a deixa vencer. Para ela, viver um dia de cada vez não significa não pensar adiante. Tanto que já pensa, também, em competir na Paralimpíada de Paris (França), daqui a três anos.
“Quero chegar lá nem que seja para anunciar minha aposentadoria. Quero chegar plena, com ótimas condições. Como diz a minha treinadora: ‘Fica até os 70 anos no atletismo e depois a gente vê’ [risos]. Enquanto tiver força, saúde e querer viver, correrei atrás dos meus objetivos e meus sonhos. Paris é logo ali e, se Deus quiser, nos meus 60 anos estarei lá”, concluiu.