No ano em que completou 18 anos, Anna Beatriz Theophilo Dutra, de Palmas (TO), ganhou de seus pais um presente, antes de iniciar a faculdade: conheceria alguns países, aperfeiçoaria o inglês e visitaria museus e universidades.
“Ela mereceu, sempre foi uma ótima aluna, esforçada”, diz a mãe, Leide Theophilo.
Depois de viajar a Miami, a Nova York e à Argentina, já com um curso de francês programado para julho, no Canadá, surgiu uma nova viagem, para Boston, onde Anna Beatriz encontraria uma amiga com quem estudou no terceiro colegial. Na cidade, as duas comemorariam seus aniversários de 18 anos, que são no mês de junho.
Os planos foram interrompidos durante uma conexão de voo em Detroit. Mesmo com autorização em seu passaporte para viajar desacompanhada dos pais, emitida pela Polícia Federal brasileira, e com visto válido para entrar no país, Anna Beatriz foi questionada pela Imigração norte-americana sobre o motivo de sua viagem aos EUA. Aparentemente, segundo o relato da jovem, os agentes desconfiavam que ela havia viajado ao país para trabalhar, estudar ou imigrar ilegalmente.
Dois dias depois, ela estava em um abrigo em Chicago para menores com problemas de documentação para entrar nos Estados Unidos, incluindo refugiados. Os jovens ficam detidos no local e seguem regras como tomar banho e escovar os dentes uma vez por dia, além de horário para acordar e dormir. Eles são obrigados a usar uniformes e não têm acesso a seus pertences pessoais, nem ao telefone celular ou à internet. As conversas com os pais, pessoais e por telefone, são limitadas e monitoradas.
Mesmo com a viagem de sua mãe e a corrida para fornecer todos os documentos à Imigração, Anna Beatriz só deixou o abrigo no dia 3 de maio, 15 dias depois de ser barrada em Detroit. Recentemente, outras duas adolescentes brasileiras passaram pela mesma situação: Anna Stéfane Radeck, de 16 anos, liberada no último dia 30, e Lilliana Matte, que permanece detida.
Ao UOL, a jovem, que está em Montréal (Canadá) concluindo seu curso de francês, contou como foi o período detida. Sua mãe, Leide, também relatou seus esforços para conseguir a liberação da filha.
O desembarque
“Cheguei tranquila e feliz. Estava indo como turista. Óbvio que praticaria o inglês, conhecendo as pessoas e os lugares, mas não tinha nenhuma intenção de estudo. Era o ano em que eu tinha para conhecer o mundo. No primeiro contato na imigração, a pessoa me perguntou, gentilmente, o que eu tinha ido fazer nos Estados Unidos. Disse que tinha ido ‘turistar’ com uma amiga, conhecer vários lugares. Achei que estava tudo bem, mas não. Fui para uma sala de interrogatório, onde fiquei uma hora sentada.
Uma senhora começou a fazer perguntas, questionando com quem eu ia ficar – respondi que seria com uma amiga. Ela pediu para ligar essa amiga. Quando peguei o telefone para passar o número, ela já me pediu o celular para ficar com ela. Ela ligou para minha amiga, que não falava inglês tão bem assim, e começou a dizer que as informações conflitavam com as minhas. Pedi uma tradutora e ela ligou novamente, com a tradutora, mas disse que não aceitaria as novas informações. Ela disse que minha amiga teve tempo de pensar para me ajudar a responder.
Me perguntaram se eu estava indo encontrar um homem, ou algum namorado no país, se estava indo para trabalhar, ou qual outro motivo. Não quero falar que foram rudes comigo, porque sei que estavam fazendo seu trabalho. Mas as perguntas não eram perguntas de verdade, pareciam mais afirmações mesmo. É um tom do tipo ‘eu sei que você tem namorado aqui, pode falar’, ou ‘já sabemos que é mentira, pode contar’.
Eu já estava muito chateada. Fui para outra sala e começaram a vistoriar minhas roupas. Começaram a julgar minhas roupas, perguntando por que eu tinha uma quantidade ‘x’ de algumas peças, ou por que não tinha levado outras. Estragaram um presente que eu havia levado para uma amiga da minha mãe, tentando ver se tinha alguma coisa dentro.”
Presa no abrigo
“Depois disso, me informaram que eu passaria por uma audiência porque minha história era ‘suspeita’, e que essa audiência seria em Chicago em três ou quatro dias. Mas foi uma falsa esperança. Sem ter ideia de onde iria ficar, fui acompanhada por dois oficiais, que me entregaram para duas pessoas, como se fossem minha ‘família’. Um disfarce para os outros. Não adiantou: me senti muito julgada, o tempo inteiro.
Cheguei a Chicago no lugar que chamam de ‘abrigo’, mas não gosto dessa palavra. Assinei um termo que dizia que estava sendo presa, então para mim era uma prisão, mesmo que não tivesse grades no quarto. Quando cheguei, colocaram um saco preto na minha cabeça – um saco plástico mesmo – com remédio antipiolho e me fizeram fazer vários testes, como de gravidez. Não pude ficar com brincos e nem qualquer pertence pessoal. Fui levada para tomar um banho e pegar minha primeira muda de roupa – um pijama.
Comecei dividindo o quarto com outras oito meninas, e depois sobraram quatro. A maior parte delas era latina: Honduras, Guatemala, México, El Salvador. A gente não podia ficar conversando muito, mas escutei muita história triste. Percebi o quanto meu problema era pequeno perto da história dessas meninas. Enquanto estive lá, outras três brasileiras estiveram no abrigo também, mas suas histórias não foram divulgadas à imprensa.
Não tínhamos nenhum acesso a internet ou telefone celular. Havia uma sala com televisão, mas era preciso passar por um longo processo para acessá-la. Eu não cheguei a usar. Tínhamos direito a um banho de sol de 45 minutos por dia, durante os quais a gente podia fazer alongamentos, correr e praticar alguns esportes, como vôlei, peteca e basquete em uma quadra pequena.
No abrigo, havia as chamadas ‘big sisters’, meninas que estavam lá há mais de um mês e que tinham bom comportamento. Eram, de certa forma, líderes, vistas como exemplos a serem seguidos pelas outras garotas.
O contato com a mãe
Demorou três dias até a gente ter nossa primeira conversa, de 20 minutos, por telefone.
Eu tinha 20 minutos por semana para falar com ela, que poderia ser duas ligações de 10 minutos ou apenas uma.
Mas só encontrei com a minha mãe no dia que ela foi me buscar. Tivemos uma hora juntas, sob supervisão da imigração, e foi isso. Saí do abrigo no mesmo dia.
A saída
Não cheguei a ter uma audiência com juiz, fui retirada antes. Seria um processo demorado, teria que aguardar em fila. Todo mundo é tratado como imigrante ilegal, e não foi por ter um visto válido que meu processo foi mais rápido. Acho que o que me ajudou mesmo foi a cobertura da mídia.
Quando eu estava no abrigo, ninguém sabia de adolescente com visto que havia sido apreendido, era meio que uma novidade. Acho que fui, pelo menos, o primeiro caso que saiu na mídia.
Visto válido, vida nova no Canadá
Meu processo foi finalizado e meu visto americano está válido. Pedimos à Imigração, por meio da nossa advogada, um adendo em nossa autorização para deixar os EUA de que meu visto não seria cancelado. Eles aceitaram. E eu voltei a passar pelos Estados Unidos um tempo depois, no caminho para o Canadá, acompanhada do meu pai.
Confesso que fiquei com muito receio. Me pararam e fizeram várias perguntas, mostrando que tinham todo o relatório do que aconteceu comigo da outra vez. O agente de imigração, depois de um monte de perguntas, disse que, se fosse por ele, meu visto teria sido cancelado. Eu acho que soou como uma ameaça, mas tudo bem. Estava com meu pai, isso me ajudou muito.
Mas não vou mentir: tenho receio de voltar aos Estados Unidos e passar por qualquer processo, mas isso não vai me impedir de viajar para lugar nenhum.
Agora estou no Canadá estudando francês, já vim com tudo certo, matriculada numa escola. E essa escola me deu um suporte gigantesco. Leram minha história e me deram uma ótima oportunidade. Aqui é maravilhoso.”
“Foram dias angustiantes”, lembra mãe
Se para Anna Beatriz os dias no abrigo foram de angústia e expectativa, a história não foi diferente para sua mãe, Leide Theophilo.
“Foi angustiante desde o momento em que ela foi levada ao abrigo até sair”, lembra. “Demorei dois dias para saber que ela tinha ido para um abrigo, e nisso entrei em contato com Itamaraty e embaixada americana. Também mandei umas 50 mil mensagens para o celular dela, tentando saber o que tinha acontecido.”
Leide diz que entende o “cuidado excessivo” dos Estados Unidos com os adolescentes, e com a preocupação com o tráfico de menores, mas questiona o procedimento.
“Eu não vejo problema nenhum nessa abordagem. Está chegando uma criança e você não sabe a procedência dela. Mas acho que é possível fazer um levantamento, descobrir se o adolescente tem alguém com quem ficar. Eles têm telefones para entrar em contato, o Facebook da pessoa, a Polícia Federal do Brasil para ser consultada, um monte de coisa. Resolva a questão na hora, não precisa levar para abrigo e ficar sujeito a tudo aquilo, encher a criança de vacina.”
“A Anna Beatriz teve todas as roupas higienizadas, e muitas foram estragadas por causa disso. Ficou sem qualquer pertence pessoal. No telefone, ela só chorava e falava “eu tô bem”, nas conversas monitoradas, mas depois me contou os detalhes. A gente ficou angustiada. Ela foi para passear e teve uma experiência revoltante.”
“Ela tinha autorização no passaporte para viajar sozinha, emitida pela Polícia Federal, passagem de ida e volta, já estava até com o curso agendado no Canadá. Dizem que ela foi barrada porque chegava com visto de turista e ia lá para estudar. Mas interpretaram como quiseram, em não entraram em contato. Foi uma coisa muito confusa.”
Após a chegada aos Estados Unidos, Leide continuou as conversas com a Imigração norte-americana para conseguir levar a filha de volta ao Brasil, o que demorou alguns dias. Mãe e filha assinaram papéis enviados pelos agentes – sem qualquer timbragem ou referência ao órgão migratório – se comprometendo a deixar o país.
“Quando encontrei minha filha, falei que já tinha as passagens de volta, sem escalas, como a Imigração americana pediu. No mesmo dia, fui ao aeroporto e a encontrei lá. Sabia que ela não teria acesso às roupas dela ainda, então comprei uma calça jeans e uma blusa e ela pôde se trocar no banheiro. Ela estava muito triste. Trocou de roupa, passou maquiagem, e aí ela começou a se sentir melhor. O agente de Imigração só foi embora quando a gente entrou no avião. Pelo menos eles foram educados. Era o mínimo.”
Os dias seguintes ainda foram muito complicados para a adolescente, relata Leide. “A Anna Beatriz ficou um mês sem conseguir dormir sozinha e acordava de madrugada perguntando ‘mãe, você está aqui? Mãe, mãe?’. A viagem para o Canadá estava sendo cancelada, mas a escola ofereceu um período para ela, e o pai se ofereceu para acompanhar. Ela é uma menina muito equilibrada e de bem com a vida, mas isso deu uma abalada.”