Entre a herança das serenatas e a busca por uma identidade sonora global, o artista cabo-verdiano transforma tradição em futuro, inspirando jovens e levando as raízes da Boa Vista ao mundo
Há memórias que não se apagam: o som de um violão antigo, a voz de uma tia-avó entoando mornas sob a luz amarela da rua, o cheiro do mar misturado ao eco distante das serenatas. É nesse cenário de lembranças e sons que começa a história de Éder Cecilio Mendes Pinto, conhecido artisticamente como JAY_D MARLEY, artista cabo-verdiano que aprendeu cedo que a música não é apenas arte, mas herança, resistência e identidade, e que hoje, aos 35 anos, vive nos Estados Unidos desenvolvendo projetos que unem tradição e inovação sem perder o vínculo profundo com as origens que o formaram.
Filho de uma terra que respira cultura, Éder cresceu entre João Galego e Rabil, em Cabo Verde, dois lugares que definiram sua relação com a música. Foi em João Galego que conviveu com Ti Nóba, tia-avó que lhe contava histórias do filho Caluchona, do violão que animava bailes e das serenatas que pareciam não ter fim. Cada canção antiga, cada narrativa cantada nas noites da ilha, formava nele a sensibilidade que mais tarde moldaria sua identidade artística. “Aquelas vozes traziam o peso da saudade e a leveza de quem canta o que vive, eu aprendi com elas que música é memória”, recorda.
As serenatas de Tiolino, seu maior ídolo e inspiração até hoje, tornaram-se a ponte entre o menino curioso e o artista em formação. O estilo emocional e técnico de Tiolino influenciou diretamente sua forma de compor e tocar, e anos depois Éder teria o privilégio de dividir o palco com ele, experiência que marcou profundamente sua trajetória e que ele ainda sonha reviver em uma gravação conjunta.
A música não estava apenas nas vozes da vizinhança, mas também em sua família. Com os tios Batista e Tone, ele passava horas ouvindo rádio e memorizando canções de ídolos nacionais e internacionais como Cesária Évora, Ildo Lobo, Bana, Jorge Neto, Gil e Grace Évora, criando letras próprias para melodias que o fascinavam. Entre amigos músicos como Palinho, Caluchona, Cacoi e Crok, observava a destreza de Magal ao violão e alimentava um sonho silencioso: transformar aquela paixão em ofício e levar adiante a herança que crescia em cada acorde.
Em Rabil, o ambiente musical era intenso. Ele acompanhava ensaios na casa da madrasta Maguy, admirava apresentações de Kaká, Abel Lima e do grupo Unison, e se deixava influenciar pela série “Malhação: New Wave”, que o inspirou a compor. Mas foi com o avô Papa Tomé, tocador de violão e símbolo da tradição familiar, que viveu o momento mais marcante de sua infância. Ao herdar o instrumento do avô em seu leito de morte, transformou a dor da despedida em música e compôs sua primeira canção completa como forma de manter viva a memória e reafirmar o vínculo eterno com a arte.

Aos 12 anos, começou a tocar violão, e aos 15 aprofundou seus estudos com o mestre Djick. Mais tarde, ingressou na Universidade de Cabo Verde, onde se dedicou ao canto, ao violão e ao grupo coral, frequentando a escola de música e aprendendo os fundamentos clássicos que sustentariam sua sonoridade. Entre 2023 e 2024, antes de mudar-se para os Estados Unidos, teve a oportunidade de aperfeiçoar sua técnica com Zequinha Magra, do icônico grupo Bulimundo, estudando o tradicional bordão na morna, uma das formas mais antigas e autênticas de tocar violão em Cabo Verde.
A carreira ganhou força quando ele se mudou para a Praia, em 2005. Envolveu-se em atividades culturais, presenciou ensaios do grupo Primitive e fundou, em 2008, a banda Txo Txo, ao lado de jovens músicos como Edmir Brito, com quem compôs a maioria dos sucessos do grupo, que durou até 2014 e encantou o público com músicas românticas e dançantes. Em 2011, foi um dos 50 escolhidos, a nível nacional, para participar nas galas, perante jurados, do concurso Talentu Strela, experiência que consolidou a sua decisão de seguir profissionalmente na música e o estimulou a investir cada vez mais na criação autoral.
Durante cinco anos, atuou como guitarrista em uma igreja evangélica, onde escreveu músicas gospel e descobriu outra vocação: formar novos talentos. Desde então, já orientou mais de 15 jovens músicos em diferentes regiões de Cabo Verde. Participou de festivais, eventos religiosos e das tradicionais noites cabo-verdianas, tanto na Praia quanto na Boa Vista, construindo um público fiel que o acompanha até hoje e que reconhece nele não apenas um artista, mas um guardião das tradições.
Entre 2020 e 2022, vieram os reconhecimentos que consolidaram sua presença na cena musical. Foi selecionado para o programa 100 Artistas em Palco, promovido pelo Ministério da Cultura de Cabo Verde, foi um dos três finalistas no concurso do Hino do INPS (2021) ao lado de nomes consagrados como Greca Évora, e recebeu o Prêmio Cultural Batuko Yaya (2022), projeto também apoiado pelo Ministério da Cultura. Essa experiência reforçou seu compromisso com a valorização das raízes culturais e abriu caminho para novas experimentações que mais tarde se transformariam em um conceito inovador: a Fusão Cultural Responsável.
Criada oficialmente em 2024, a metodologia nasceu do desejo de preservar a autenticidade musical cabo-verdiana em meio à modernização e à influência global. O projeto integra tradição e inovação com o uso da inteligência artificial como ferramenta de catalogação e reintegração cultural, além de promover oficinas, workshops e performances educativas que unem pesquisa e prática. “A tradição não é algo que se congela no tempo, ela se fortalece quando dialoga com o presente”, afirma Éder, que já colhe resultados como o reconhecimento institucional, a formação de jovens músicos e o crescente engajamento da diáspora cabo-verdiana.
Atualmente, vivendo nos Estados Unidos, ele desenvolve projetos de fusão cultural em Massachusetts, levando a identidade sonora cabo-verdiana a palcos internacionais e construindo uma imagem artística que combina qualidade internacional, respeito à tradição, fusão criativa, letras atuais e alma cabo-verdiana. Entre seus trabalhos recentes estão a canção “João Galego”, feita em parceria com o artista DIDS e que ultrapassou cinco mil visualizações no YouTube, além da produção de hinos oficiais para clubes de futebol e participações em festivais e eventos comunitários que ampliam sua presença fora do país.

Com o mesmo violão herdado do avô e a mesma convicção de que cultura é o que mantém um povo de pé, Éder Mendes segue expandindo suas oficinas educativas e levando o método Fusão Cultural Responsável para outras comunidades afro-diaspóricas, com o objetivo de tornar-se referência internacional em cultura musical africana contemporânea. “Quero mostrar que a nossa música pode dialogar com o mundo sem perder a alma cabo-verdiana, porque a fusão responsável é o que mantém viva a nossa identidade”, afirma com serenidade.
Hoje, ao olhar para o caminho percorrido, ele entende que cada nota tocada desde João Galego foi uma forma de agradecer às suas raízes. Sua voz, seu violão e seu amor pela cultura são instrumentos de resistência e esperança, e o artista que um dia compôs sua primeira canção para curar a dor agora canta para unir gerações, territórios e sonhos, mantendo viva a promessa de que a música cabo-verdiana continuará ecoando pelo mundo, reinventando-se sem jamais se perder de si.
Texto criado por Andre Luis
Supervisão jornalística aprovada por Nathalia Pimenta